Redes surtam com curso que responsabiliza homem branco, hétero e cristão pela emergência climática

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“O aquecimento global é culpa do homem branco, cristão e heterossexual, diz faculdade da Bélgica.” Esse título, que apareceu em diferentes sites brasileiros na última semana, uniu negacionistas e conservadores. A declaração — que foi considerada absurda, para dizer o mínimo — foi alvo de publicações irônicas, zombaria e vídeos de react que acusavam a universidade de doutrinação ideológica.

Print de vídeo em que mulher comenta texto com o título ‘O aquecimento global é culpa do homem branco, cristão e heterossexual, diz faculdade da Bélgica’
Descrição de curso da Universidade de Liége foi alvo de críticas e zombaria em publicações que ultrapassaram dezenas de milhares de visualizações (Reprodução/X)

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As publicações se referem ao curso “Sustentabilidade e Transição” da Universidade de Liége, que explica, em sua descrição, que:

“Existe hoje um consenso científico sobre a degradação das condições habitáveis ​​da terra e sobre a responsabilidade do homem (…). Se trata do homem ‘ocidental’ branco, cristão e heterossexual. Evitemos assim esconder as profundas desigualdades relativas às responsabilidades intrínsecas face às perturbações ambientais à escala planetária.”

Após críticas de estudantes e congressistas belgas, a universidade modificou o texto, que agora diz que o curso pretende desenvolver um ensino interdisciplinar para que os alunos compreendam a natureza sistêmica — levando em consideração tanto a área ambiental quanto a social — das mudanças climáticas.

Enquanto na Bélgica alguns apelidaram o curso de “woke” — expressão cuja tradução mais próxima seria “esquerdopata” —, usuários brasileiros importaram o problema para tentar criticar a agenda ambientalista e retomar o argumento negacionista de que o homem não é culpado pelas mudanças climáticas.

Em algumas publicações, há até quem questione a afirmação da Universidade de Liége sobre a responsabilidade do homem ocidental e alegue que a culpa do aquecimento global é, na verdade, da China, país que atualmente lidera o ranking mundial de emissões de CO₂.

Como é costumeiro na A Que Ponto Checamos, vamos por partes:

1. Sim, a humanidade é a principal responsável pelas mudanças climáticas

Como essa newsletter já apontou, é consenso entre os especialistas que o homem é responsável pelo aquecimento do planeta — que, por sua vez, influencia diretamente os diversos fenômenos climáticos extremos que já estamos vivenciando.

Conforme explica a própria ONU:

“Desde 1800, as atividades humanas têm sido o principal impulsionador das mudanças climáticas, principalmente devido à queima de combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás. A queima de combustíveis fósseis gera emissões de gases de efeito estufa, que agem como um grande cobertor em torno da Terra, retendo o calor do sol e aumentando as temperaturas.”

Além da queima de combustíveis, a ONU aponta que o desmatamento e os aterros sanitários também constam na lista de principais emissores de gases de efeito estufa.

2. A afirmação da universidade vai ao encontro de outros levantamentos

Ao dizer que o principal responsável pelo aquecimento global é o “homem branco, hétero e cristão”, a universidade se refere à desigualdade climática. A própria instituição, após as críticas, emitiu uma nota que explica:

“É nossa responsabilidade, como instituição acadêmica, lançar luz sobre as questões complexas da transição ecológica, baseando-nos em dados científicos, mesmo que isso desafie certas ideias pré-concebidas. Apontar responsabilidades diferenciadas não tem como objetivo fazer com que as pessoas se sintam culpadas, mas sim conscientizá-las para impulsionar mudanças que atendam aos desafios.”

É consenso entre os ambientalistas que existe uma desigualdade climática: os países mais desenvolvidos são os principais responsáveis pelo aquecimento global, mas quem mais sofre com as mudanças no clima são os países mais pobres. E mais: os números mostram que mulheres e negros são desproporcionalmente mais vulneráveis aos impactos ambientais.

A declaração da Universidade de Liége “foi uma forma menos sutil de dizer algo que é um fato: que a origem do colapso ecológico global tem em sua raiz o colonialismo e a estrutura capitalista”, argumentou o ambientalista e professor da UECE (Universidade Estadual do Ceará) Alexandre Araújo Costa em entrevista ao Aos Fatos.

Em um artigo publicado na Lancet em 2020, o antropólogo Jason Hickel comparou o impacto das nações nas mudanças climáticas, levando em consideração as emissões cumulativas de CO₂. Na época, o grupo que compunha o G8 foi responsável por cerca de 85% das emissões históricas:

“Estes resultados ilustram o que poderia ser referido como um processo de colonização atmosférica. Um pequeno número de países de rendimento elevado apropriou-se substancialmente mais do que a sua quota-parte dos bens comuns atmosféricos. Tal como muitos destes países confiaram na apropriação de mão-de-obra e recursos do Sul Global para o seu próprio crescimento econômico, também confiaram na apropriação de bens comuns atmosféricos globais, com consequências que prejudicam desproporcionalmente o Sul Global.”

3. Apesar de ser hoje a maior emissora de CO₂, a China não é a maior responsável pela crise climática

Por mais que a potência asiática de fato seja a campeã nas emissões de CO₂ desde meados da década de 2000, seus números são ainda muito inferiores ao acumulado de emissões lançadas pelos Estados Unidos e pelos países europeus desde a revolução industrial.

Gráfico mostra as mudanças no ranking de emissões globais de CO₂
Hoje, China é a principal emissora de CO₂ do planeta, seguida dos EUA e da União Europeia (Reprodução/Our World in Data)

Do 1,77 trilhão de toneladas de CO₂ emitidos na história da humanidade, 426,9 bilhões são de origem americana (24,1% do total). Depois, vem a União Europeia, com 295,9 bilhões de toneladas (16,7%), e então a China, com 260,2 bilhões de toneladas (14,7%).

Gráfico mostra as emissões históricas de CO₂ desde 1850
Historicamente, EUA e União Europeia emitiram mais CO₂ do que qualquer outra nação (Reprodução/Our World in Data)

“Os indivíduos muito ricos, os países ricos com elevadas emissões e as grandes empresas poluentes devem pagar o maior preço para evitar um colapso climático total, financiando os custos do combate às mudanças climáticas e reduzindo primeiro, rapidamente as suas emissões. São também eles que devem ser obrigados a renunciar à sua influência excessiva sobre a política e a economia mundial impulsionada pelos combustíveis fósseis”, argumenta o relatório da Oxfam.

Concluindo: não, a Universidade de Liége não tirou essa afirmação do nada. As nações majoritariamente brancas e cristãs são, historicamente, as principais responsáveis pela emissão de gases do efeito estufa — e por isso, segundo os ambientalistas, devem ser protagonistas no combate às mudanças climáticas.

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