Tema central na eleição paulistana, Cracolândia segue sem solução em meio a falta de dados e polarização

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Apontada pelos eleitores como um dos principais problemas de São Paulo nos últimos anos, a Cracolândia tem sido um tema recorrente nas entrevistas e debates com os candidatos à prefeitura da cidade. Enquanto o atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), se vangloria de ter supostamente diminuído o fluxo na região, seus adversários criticam a ineficiência no enfrentamento à situação.

De acordo com especialistas entrevistados pelo Aos Fatos, a falta de dados de qualidade dificulta avaliar se houve avanços e qual é o cenário da principal área pública com consumo de drogas na cidade. Sem informações confiáveis, também se torna difícil discutir possíveis soluções para o problema social, que se arrasta desde a década de 1990.

Entenda abaixo três pontos sobre o tema que são considerados críticos por especialistas:

  1. A falta de dados sobre dependentes químicos
  2. A falta de dados sobre tratamento
  3. Interrupção de programas

Foto mostra usuários de drogas nos arredores da Praça da Sé em 2020
Concentração de usuários de drogas existe desde a década de 1990 e mudou de lugar após operações de dispersão (Editorial Jornalístico e Conteúdo Online)

1. Falta de dados sobre dependentes químicos

Alegações sobre o aumento ou a redução no fluxo de usuários de drogas que frequentam a Cracolândia esbarram nos problemas metodológicos da contagem oficial da prefeitura e na ausência de levantamentos sistemáticos que permitam comparações entre gestões.

Atualmente, a Prefeitura de São Paulo monitora o fluxo da Cracolândia por meio do Programa Dronepol, lançado em 2017, durante a gestão de João Doria (PSDB). O projeto divulga dados diariamente e também publica relatórios com médias por período (veja aqui dados de 2018 a 2021).

Há, no entanto, três problemas com as estimativas feitas pelo programa:

  • Elas são feitas apenas nos períodos diurno (10h às 11h) e vespertino (15h e 17h), e não contabilizam dados do período noturno;
  • Como as imagens são capturadas por drones, usuários ocultos pela vegetação ou por barracas não são contabilizados, o que pode levar à subnotificação;
  • E só são consideradas aglomerações com mais de 30 usuários, o que exclui do levantamento concentrações espalhadas pela cidade que são frequentadas por um fluxo menor de pessoas.

Print da interface do Dronepol mostra mapa de São Paulo e estimativa de público
Interface mapeia cena de uso de drogas e estima número de usuários diariamente (Reprodução/Prefeitura de São Paulo)

Em nota enviada ao Aos Fatos, a prefeitura afirmou que, apesar de não divulgar esses números, ela também realiza contabilizações noturnas durante as operações da GCM (Guarda Civil Metropolitana) de 15 em 15 dias.

Questionada sobre a metodologia, a gestão afirmou que a contagem é “feita de forma manual, um a um, por ocasião do processo de identificação das pessoas”. Ainda de acordo com a prefeitura, esses dados não são divulgados no site do Dronepol pois não são realizados com o mesmo método do programa.

Antes do Dronepol, a contabilização do fluxo da Cracolândia era feita esporadicamente pela prefeitura e por pesquisadores sem vínculo com a gestão municipal:

  • A gestão de Fernando Haddad (PT) relatou em 2015 uma diminuição de 80% no fluxo diário de usuários na região — os números teriam caído de 1.500 para 300. A metodologia, no entanto, não foi tornada pública;
  • O governo do estado e a PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) também estimaram a população da Cracolândia em 2016 e 2017. Segundo o levantamento, a média de pessoas na região cresceu de 709 em 2016 para 1.861 em 2017;
  • Já a UNIAD (Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas) realizou levantamentos entre 2016 e 2019. A metodologia, que contabilizava o total de pessoas presentes em quatro turnos — entre 9h30 e 17h30 —, estimou um fluxo médio de 709 pessoas em maio de 2016, 1.861 em maio de 2017, 414 em junho de 2017, após uma operação policial, e 1.680 em outubro de 2019;
  • Por fim, o LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade) da USP produziu um levantamento em maio de 2022 por meio de acompanhamento direto na região. Os pesquisadores estimaram um fluxo entre 1.000 e 2.000 pessoas, espalhadas por diversos pontos do centro da cidade.
"Ao longo desses 30 anos de existência da cracolândia, não foram feitas pesquisas longitudinais, de forma ininterrupta, seguindo a mesma metodologia. O que a gente tem são pesquisas dispersas, com metodologias diferentes, em tempos diferentes. E muitas dessas pesquisas também são encomendadas pela própria gestão da vez. São pouquíssimo confiáveis”, afirmou ao Aos Fatos Aluízio Marino, pesquisador do LabCidade da USP.

Dispersão. Danee Amorim, agente redutora de danos na ONG É de Lei, apontou em entrevista ao Aos Fatos que hoje a concentração principal da Cracolândia, localizada na praça Princesa Isabel, é visivelmente menor do que a que antes existia no entorno da praça Júlio Prestes.

Segundo ela, no entanto, é importante lembrar que há “outras concentrações menores em outros lugares de São Paulo” que são ignoradas pelo levantamento da prefeitura.

De acordo com dados do governo estadual divulgados pela Folha de S.Paulo, havia outras 71 aglomerações de usuários de drogas na capital paulista no primeiro semestre de 2023.

O levantamento da Secretaria de Segurança Pública apontou que havia, naquela época, 41 cenas de uso de drogas — locais com no mínimo 15 usuários em ao menos três dias — na periferia, 15 no centro e sete em áreas nobres.

Em nota, a prefeitura afirmou que os dados divulgados pela Folha de S.Paulo são antigos e que, atualmente, “registra apenas uma concentração na cidade, na rua dos Protestantes”.

Essa informação, no entanto, é refutada pela reportagem. De acordo com a Folha de S.Paulo, foi possível identificar outras cenas de uso de drogas e que, em julho deste ano, ainda havia usuários em ao menos dois outros locais.

Foto mostra Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT II)
Prefeitura possui centros de atendimento em locais próximos à principal cena de uso (Edson Lopes/Secom)

2. Falta de dados sobre tratamento

Também há pouca clareza nos dados sobre pessoas em tratamento no Programa Redenção, criado em 2019 para auxiliar dependentes químicos e indivíduos em situação de vulnerabilidade.

De acordo com a prefeitura, atualmente há 4.133 vagas para tratamento de dependentes químicos: 1.498 municipais e 2.635 estaduais.

Além de o programa atender todos os tipos de dependência química, e não só usuários de crack, também entram na conta da prefeitura as vagas ofertadas pelos Caps (Centros de Atenção Psicossocial), que atendem pacientes com demandas de saúde mental, por exemplo.

Dados mensais do programa apontam que, em maio deste ano, foram contabilizadas 11.225 abordagens na cena de uso, que resultaram em 1.880 encaminhamentos para tratamento ou acolhimento.

Sozinhos, no entanto, esses números não significam muito. “O indicador é quantitativo”, explicou Aluízio Marino ao Aos Fatos. “Quando você não qualifica que tipo de atendimento foi dado, de onde essas pessoas vêm, quais são os problemas que elas apresentam, a gente fica meio que mostrando dados que não dizem nada.”

Em 2017, o Ministério Público de São Paulo publicou um estudo em que alegou que o Redenção era um programa ineficiente, porque não apresentava alternativas à internação, não possuía um projeto terapêutico definido e não tinha profissionais suficientes.

“A internação não resolve, porque não resolve o motivo pelo qual a pessoa foi para lá. Então a maioria volta [depois de ser internado]”, afirma Danee Amorim.

A despeito das abordagens, parte considerável dos frequentadores da Cracolândia opta por não deixar o local. Levantamento da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) divulgado em janeiro do ano passado mostrou que 39% dos usuários que se concentram na região vivem ali há ao menos 10 anos.

Foto mostra grades colocadas pela gestão Nunes para separar usuários da cracolândia
No início de abril deste ano, a prefeitura instalou grades e, em maio, construiu um muro em volta do terreno da cena de uso (Paulo Pinto/Agência Brasil)

3. Interrupção de programas

Marino aponta ainda um outro problema em relação à recuperação dos dependentes químicos da Cracolândia: a descontinuidade de programas. “Entra um novo prefeito, ele quer deixar a marca dele e não termina a política do anterior”, explica.

Essa descontinuidade, completa o especialista, afeta os acompanhamentos e o monitoramento dos territórios: “troca-se os profissionais, as coordenações e as estratégias”.

Em 2014, a gestão de Fernando Haddad (PT), por exemplo, lançou o Programa De Braços Abertos, que oferecia remuneração, alimentação, atividades de capacitação e vagas em hotéis na região para usuários cadastrados.

Quando João Doria (PSDB) assumiu a prefeitura, em 2018, o programa — apelidado por ele de “bolsa crack” — foi encerrado, e antigos beneficiários perderam inclusive suas moradias. No ano seguinte, foi lançado o Redenção, que enfocava o tratamento.

A gestão tucana também foi marcada pelo endurecimento do policiamento na região. Em uma operação realizada em maio de 2017 para dispersar os usuários do local, Doria chegou a afirmar que a Cracolândia havia acabado. Pouco tempo depois, no entanto, o fluxo se instalou em outra região do centro.

O policiamento continuou na gestão de Nunes, que, em junho deste ano, em parceria com o governo estadual, criou o Corredor da Saúde. Foram instaladas grades ao redor da maior aglomeração de crack para delimitar o espaço ocupado e deixar uma faixa da rua livre para a circulação de veículos, que havia sido interrompida.

Em 2022, a atual gestão lançou o SCP (Serviço de Cuidados Prolongados), com o objetivo de reinserir pacientes do CAPs na sociedade por meio de tratamentos terapêuticos.

Especialistas consultados pelo Aos Fatos afirmam que a situação da Cracolândia atualmente é complexa e se beneficiaria com o fim da polarização em torno das políticas de recuperação dos usuários.

“A gente tem que acabar com essa falsa dicotomia que a Cracolândia ou é problema de segurança ou é problema de saúde. É problema de segurança, é problema de saúde e também é problema moradia”, explica Marino.

“A Cracolândia não é uma coisa que você vai resolver da noite para o dia. Tem uma questão de como a gente lida com esse usuário antes dele chegar na Cracolândia e como a gente controla esse fluxo de entrada de drogas ali”, afirmou ao Aos Fatos Rafael Alcadipani, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Essa é a mesma posição de Danee Amorim, que acredita que os projetos da prefeitura devem gerar autonomia ao usuário e amenizar os danos estruturais que o levaram a consumir a droga. “Não adianta nada internar a pessoa e tratar se ela não tem um lugar para voltar.”

O caminho da apuração

Com base nas declarações dos candidatos à Prefeitura de São Paulo, Aos Fatos procurou bases de dados sobre o fluxo e o tratamento de usuários da Cracolândia. Ao ser constatado que havia falhas nesses levantamentos, a reportagem buscou especialistas que pudessem comentar sobre o assunto.

Também procuramos pesquisas antigas sobre o tema, documentos oficiais e análises sobre os programas conduzidos pela prefeitura nas gestões Nunes, Doria e Haddad.

Por fim, Aos Fatos enviou perguntas para a gestão atual para questionar as falhas nos dados apontadas pelos especialistas. As respostas da gestão foram adicionadas à reportagem.

Referências

  1. Datafolha
  2. Secretaria de Segurança Urbana de São Paulo
  3. Secretaria Executiva de Projetos Estratégicos de São Paulo (1, 2, 3, 4, 5 e 6)
  4. Metrópoles
  5. Prefeitura de São Paulo (1 e 2)
  6. Secretaria de Desenvolvimento Social de São Paulo
  7. Uniad
  8. LabCidade
  9. Folha de S.Paulo (1, 2 e 3)
  10. EBC
  11. g1 (1 e 2)
  12. Unifesp

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