Dois anos após o início da guerra em Gaza, publicações que acusam os palestinos de encenar o próprio sofrimento têm viralizado nas redes para tentar minimizar os impactos do conflito, que já deixou ao menos 67 mil palestinos mortos, segundo dados do Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas.
Aos Fatos identificou 75 publicações — que, juntas, acumulam ao menos 285 mil interações, entre curtidas e comentários — usando variações dos termos “Pallywood” ou “Gazawood” para alegar que imagens da guerra entre palestinos e israelenses seriam ficcionais.
Esses posts sustentam a ideia de que as cenas de fome, morte e destruição em Gaza seriam montadas com atores para despertar a comoção internacional.
Apesar de não ser nova — a combinação das palavras Palestina e Hollywood existe desde o início dos anos 2000 —, a teoria passou a viralizar em 2023, após a eclosão da guerra entre Israel e Hamas.
Em 2025, após dois anos de conflito, iniciado com o ataque do Hamas a Israel e o sequestro de israelenses, o termo segue sendo usado como ferramenta de desinformação. Das publicações analisadas por Aos Fatos, 67 foram publicadas desde o início deste ano em plataformas como X, Facebook, Instagram e Telegram.
Atualmente, os posts conspiratórios circulam em meio a tentativas de negociação após a apresentação de um plano de paz elaborado pelos Estados Unidos e mediado pelo Egito. Dentre diversos pontos, o acordo prevê a libertação de reféns israelenses em troca de prisioneiros palestinos e uma trégua temporária.
O que é ‘Pallywood’?
O termo surgiu no início dos anos 2000 em ambientes online e fóruns pró-Israel para descrever, de forma pejorativa, supostos casos em que palestinos encenariam situações de violência ou sofrimento com o objetivo de manipular a opinião pública internacional.
A palavra se popularizou após a repercussão da morte de Muhammad al-Durrah, de 12 anos, em setembro de 2000. O caso, registrado por uma equipe da emissora francesa France 2, mostrava o menino e seu pai abrigados atrás de um barril, em meio a um tiroteio entre forças israelenses e palestinas em Gaza.
As imagens se tornaram símbolo da violência do conflito. No entanto, meses depois do ocorrido, pessoas ligadas ao governo israelense começaram a alegar que o vídeo havia sido encenado. Nada disso foi comprovado, mas a controvérsia popularizou a ideia de que os palestinos produzem “teatros de guerra” para sensibilizar a mídia.
A partir de 2023, após o início do atual conflito em Gaza, “Pallywood” ressurgiu com força nas redes, empregado por usuários que classificavam como falsas as imagens de bombardeios, funerais e hospitais lotados. A expressão também ganhou variantes, como “Gazawood”.
Segundo Vitélio Brustolin, professor de Relações Internacionais da UFF (Universidade Federal Fluminense) e pesquisador da Universidade de Harvard, o objetivo da conspiração não é exatamente provar uma suposta fraude, mas sim semear dúvidas sobre qualquer evidência visual proveniente de Gaza.
“Há também uma redução no impacto moral, que transformaria sofrimento em propaganda, e uma tentativa de normalização da negação e da relativização de crimes de guerra, porque não há dúvida que os dois lados cometem crimes de guerra”, afirmou o especialista ao Aos Fatos.
Perfis oficiais compartilham o termo
A difusão dessas narrativas não se restringe a influenciadores ou perfis anônimos. Em 6 de agosto de 2025, a embaixada de Israel no Brasil publicou em sua conta oficial um post que citava “Pallywood” para sugerir que a crise humanitária em Gaza seria forjada.
Uma foto foi encenada. A outra desmentiu.
— Israel no Brasil (@IsraelinBrazil) August 6, 2025
Enquanto o @BILD revelou como os fotógrafos do Hamas montam cenas para propaganda, a revista Time cai na armadilha da propaganda.
É assim que funciona o Pallywood:
Emoção fabricada. Conivência da mídia. A verdade descartada.@TIME… pic.twitter.com/2JxaBOlbM4
A publicação compartilha uma foto divulgada pela revista americana Time, que mostra palestinos segurando panelas diante de um ponto de distribuição de comida, ao lado de uma reportagem do tabloide alemão Bild intitulada “Este fotógrafo de Gaza encena a propaganda do Hamas”.
A matéria acusa o palestino Anas Zayed Fteiha, colaborador da agência de notícias turca Anadolu, de montar cenários de pessoas famintas “para benefício do Hamas”. Apesar de afirmar ter provas de que as cenas haviam sido encenadas, o jornal baseou-se apenas na interpretação de uma imagem em que Fteiha aparece fotografando pessoas com panelas vazias atrás de uma grade metálica.
A suposta evidência foi obtida no banco da Getty Images, onde consta com a legenda original: “Jornalistas documentam as lutas diárias durante a crise humanitária em Gaza”.
Outros ângulos da cena mostram o mesmo local momentos antes da distribuição de alimentos organizada pela ONG paquistanesa Mercy Mission, confirmando que se tratava de uma fila real de entrega de donativos.
Além disso, a foto publicada pela Time sequer era de autoria de Fteiha, e sim do fotógrafo Ali Jadallah, também palestino e colaborador da Anadolu. Fteiha apenas foi retratado nos registros da cena, feitos por Khames Alrefi.

Diversas organizações de checagem internacionais, incluindo a israelense Fake Reporter e a árabe Misbar, analisaram os registros e confirmaram sua autenticidade. As imagens mostram, de fato, palestinos aguardando comida em meio à escassez causada pelo bloqueio israelense.
Apesar das checagens e da ausência de provas, a publicação da Embaixada de Israel no Brasil segue no ar, sem correções ou esclarecimentos. Aos Fatos entrou em contato, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem. O perfil institucional do Estado de Israel também fez uma publicação similar, que ainda está disponível nos canais oficiais.
Outros casos
As publicações encontradas por Aos Fatos variam entre conteúdos verificáveis e outros sem elementos suficientes para checagem. Alguns exemplos ajudam a entender como a narrativa conspiratória é construída e se propaga nas redes.
Uma das publicações, por exemplo, afirma que “em nenhum outro lugar do mundo uma zona de batalha exigiu tantas produções encenadas de ataques falsos e fome”, e é acompanhada de um vídeo que mostra um homem filmando uma criança parada enquanto, atrás dela, é simulada uma explosão.
Aos Fatos identificou o autor do vídeo original, já deletado, no Instagram. O usuário se define como ator, diretor e produtor e compartilha tanto as filmagens quanto os bastidores de suas criações. Outros vídeos em seu perfil seguem o mesmo padrão, mostrando que se tratava de uma produção artística, e não de imagens reais do conflito.
Outro exemplo retrata crianças aparentemente sem vida cobertas por lençóis brancos, enquanto uma mulher de hijab toca o rosto de uma delas. Algumas publicações alegavam que a mulher estaria aplicando maquiagem para simular ferimentos ou morte, enquanto outras até diziam que a criança seria uma boneca.
Na verdade, o vídeo foi publicado originalmente (atenção: conteúdo sensível) pelo jornalista palestino Omar Al-Dirawi em 8 de novembro de 2023, com a legenda “Mãe dá adeus a seus filhos”. Ela foi registrada após o bombardeio de um edifício no campo de refugiados de Nuseirat, em Gaza.
Pesquisas cruzadas com notícias dos jornais Palestine Chronicle, Quds News e IHA confirmaram que o vídeo correspondia ao mesmo incidente, no qual cerca de 17 pessoas — a maior parte crianças — foram mortas.
A comparação entre as imagens publicadas pela imprensa e o vídeo compartilhado nas peças desinformativas confirma que se trata, de fato, de registros do mesmo ataque.

Um terceiro caso, já checado pelo Aos Fatos, mostra os bastidores de um curta-metragem de ficção produzido em 2022, que viralizou entre adeptos da teoria conspiratória como se mostrasse uma encenação do Hamas para amplificar o impacto do conflito com Israel.
Conteúdo não-checável. Aos Fatos encontrou diversas publicações que não continham alegações verificáveis por diferentes motivos — algumas eram postadas em perfis pessoais, outras não tinham registro jornalístico do caso ou não apresentavam contexto suficiente para checagem.
Entre elas, muitas se apoiavam em argumentos do tipo “se algo foi filmado ou fotografado, isso significa que o conteúdo é falso”, como no caso da capa da revista Time. Por haver registros do fotógrafo em ação, as imagens passaram a ser interpretadas automaticamente nas redes como encenações.
Outros posts afirmam que o fato de pessoas sorrirem ou realizarem atividades cotidianas em imagens indicaria que o sofrimento é falso. Em muitos casos, essas publicações sequer apresentam vídeos específicos, apenas sugerem encenação usando o termo “Pallywood”.
![A imagem mostra uma captura de tela do Instagram. No lado esquerdo, aparecem dois vídeos lado a lado. O vídeo da esquerda mostra uma criança com rosto desfocado e legendas em inglês dizendo: 'Because of lack of food, our children are eating whatever their bodies can find. They are hungry.' ('Por conta da falta de comida, nossas crianças estão comendo qualquer coisa que seus corpos encontram. Elas estão com fome'). À direita, a filmagem mostra uma vitrine de padaria com prateleiras contendo alimentos. Na parte superior dos vídeos, há um texto em vermelho escrito em inglês: 'Both videos were filmed in Gaza at the same time' ('Ambos os vídeos foram filmados em Gaza ao mesmo tempo'). Sobreposta aos dois vídeos, está a imagem de uma mulher com o rosto desfocado. No lado direito da imagem, está a interface do Instagram, com o nome de uma conta verificada no topo, que fez a publicação há 11 semanas, escrevendo: 'siga [desfocado] para ver a exposição diária da hipocrisia de Gazawood (a Hollywood palestina)'. Abaixo, há comentários de usuários e a data da postagem, feita em 14 de julho.](https://static.aosfatos.org/media/cke_uploads/2025/10/06/03-10-25-paliwood-video1.png)
Israel restringe fortemente a entrada de jornalistas estrangeiros em território palestino. Todas as fronteiras, espaços aéreos e marítimos são controlados por forças israelenses, e o governo cogita começar a permitir a entrada apenas de alguns jornalistas acompanhados por militares. Com isso, grande parte das imagens do conflito é produzida por pessoas que vivem no local.
Além disso, dentre os cerca de 1.600 jornalistas registrados em Gaza, 252 foram mortos em ataques israelenses desde o início da ofensiva até agosto de 2025, segundo o Sindicato dos Jornalistas da Palestina.
Desde a ocupação israelense, iniciada em outubro de 2023, cerca de 3.400 jornalistas foram proibidos de entrar no enclave palestino, incluindo 820 jornalistas dos Estados Unidos, aliado de Israel.
Negociações de paz e proposta dos EUA
Quase dois anos após o início do conflito, Israel e Hamas retomaram negociações indiretas para discutir um plano de cessar-fogo e a libertação de reféns. O acordo foi elaborado pelos Estados Unidos e é mediado pelo Egito.
No domingo (5), o secretário de Estado americano, Marco Rubio, afirmou que "90% do acordo está concluído, e estamos finalizando a parte logística". O presidente dos EUA, Donald Trump, disse que os reféns israelenses serão libertados "muito em breve".
O Hamas deu uma resposta positiva a duas das principais exigências do plano: a libertação de todos os reféns no início do cessar-fogo e a renúncia do controle do território de Gaza, abrindo espaço para a governança de políticos palestinos independentes.
O grupo aceitou também a “fórmula de troca”: todos os reféns restantes em troca de 250 prisioneiros palestinos e 1.700 detidos desde 7 de outubro de 2023.
Pontos em aberto. Apesar dos avanços, o Hamas não concordou com a exigência de desarmamento prevista no plano dos EUA e insiste em participar da estrutura de governança palestina, contrariando a proposta de que não teria nenhum papel no controle de Gaza.
Além disso, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, afirmou que não cumprirá nenhum termo do acordo antes de todos os cerca de 50 reféns israelenses cruzarem a fronteira de Israel.
Um representante do Hamas disse em entrevista no domingo (5) que o grupo busca um resultado positivo nas negociações. Ele protestou contra a continuidade dos bombardeios israelenses em Gaza, que, segundo autoridades de saúde palestinas, mataram dezenas de pessoas no último fim de semana.
Sobre os ataques, o secretário de Estado americano, Marco Rubio, reiterou uma fala de Trump, afirmando que Israel precisa interromper os bombardeios para permitir a retirada segura dos reféns. Netanyahu, por sua vez, defendeu o direito de prosseguir com os ataques, realizando apenas breves pausas enquanto não houver um cessar-fogo formal.
O caminho da apuração
Aos Fatos realizou uma coleta manual de publicações no Telegram, Facebook, Instagram e X a partir de buscas pelos termos ‘Pallywood’ e variações. Os posts foram analisados e classificados conforme o tipo de desinformação e a possibilidade de verificação.
Também entrevistamos o professor de Relações Internacionais da UFF e pesquisador de Harvard, Vitélio Brustolin, para entender mais sobre o tema e contextualizar os efeitos da teoria na percepção pública do conflito.
Por fim, foram consultados veículos de imprensa de diversos países para checar a veracidade das imagens e contextualizar o tema.



