Como surgiu a desinformação sobre paracetamol e autismo e por que ela não procede

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Com base em uma desinformação antiga e já desmentida por organizações de saúde e cientistas, o presidente americano Donald Trump anunciou na segunda-feira (22) que a FDA (Food and Drug Administration, agência regulatória americana) passará a contraindicar o uso de paracetamol por pessoas grávidas. Segundo ele, o remédio estaria ligado ao desenvolvimento de TEA (Transtorno do Espectro Autista) em bebês.

Porém, não há provas que sustentem a relação entre o uso do medicamento na gravidez e o diagnóstico de autismo, de acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde) e outras entidades, como a EMA (European Medicines Agency), da União Europeia, o NHS (National Health Service), do Reino Unido, e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), do Brasil.

A despeito da ausência de evidências, a fala de Trump ganhou apoio nas redes, inclusive no Brasil. Parlamentares, como a deputada federal Júlia Zanatta (PL-SC), e influenciadores, como Francisco Cardoso, conselheiro do CFM (Conselho Federal de Medicina), repercutiram a desinformação e passaram a atacar o medicamento (veja abaixo).

A imagem mostra uma publicação em rede social que contém um vídeo e legendas sobre o suposto alerta do governo de Donald Trump em relação ao uso de paracetamol na gravidez. No centro do vídeo aparece Donald Trump, homem de pele clara e cabelo loiro, vestindo terno azul escuro, camisa branca e gravata azul, falando em um púlpito. Ao lado dele estão dois homens também de pele clara e cabelos grisalhos, ambos usando terno escuro e gravata. Acima do vídeo, há a frase ‘Governo Trump alerta:’, seguida do texto ‘Uso de paracetamol na gravidez pode aumentar risco de autismo’. À direita, aparece a interface de uma rede social com o nome da deputada federal Júlia Zanatta, que compartilha a publicação acompanhada de texto em que reforça a relação falsa entre paracetamol e autismo, além de comentários de usuários questionando a fonte da informação.
Fala de Trump fez publicações negacionistas viralizarem no Brasil (Reprodução/Facebook)

A associação enganosa entre o crescimento no número de diagnósticos de TEA e o uso de paracetamol não é nova: tentativas de correlacionar os dois existem há mais de 20 anos. O assunto voltou à tona agora por influência do secretário de Saúde dos EUA, Robert F. Kennedy Jr.

Linha do tempo da desinformação que associa paracetamol e autismo

A revista "BMC Pediatrics" publica uma revisão do pesquisador Anthony Torres, da Utah State University. A hipótese é que o aumento no número de casos de autismo poderia ser explicado pelo uso de medicamentos para o controle de febre por mães ou crianças pequenas. O estudo, no entanto, não traz evidências que comprovem a tese.

O periódico "Autism" publica um estudo que busca verificar a relação entre o uso do paracetamol e a aplicação da vacina contra a rubéola com o autismo em crianças. O texto diz ter encontrado associação entre os casos, mas a pesquisa foi feita com base apenas em entrevistas com pais.

Viralização da desinformação

A relação falsa entre o medicamento e a condição em crianças ganha força com a publicação de um artigo na "International Journal of Epidemiology". Ele sugere que o uso de paracetamol durante a gravidez teria associação com autismo e déficit de atenção e hiperatividade. O artigo ganha evidência ao ser divulgado por sites de notícias e conselhos de saúde do mundo todo.

O tema volta a circular nas redes com a publicação de outro estudo, agora da "European Journal of Epidemiology", que sugere que o uso do paracetamol por pessoas grávidas poderia estar relacionado ao autismo e ao TDAH. O próprio estudo, no entanto, declara ter limitações e que deve ser interpretado com cuidado.

A "Nature" publica um documento no qual alerta que estudos observacionais teriam indicado que a exposição ao paracetamol no período pré-natal poderia aumentar os riscos de doenças de neurodesenvolvimento, reprodutivas e urológicas. O texto, então, pede que os profissionais evitem o uso indiscriminado do medicamento e o receitem em doses pequenas.

Após a declaração da "Nature", há uma enxurrada de processos judiciais de pais de crianças autistas contra a Kenvue, fabricante do Tylenol, na Justiça americana. Em outubro de 2022, é aberta a Tylenol Class Action, que reúne todos os casos em um só tribunal. A juíza responsável pelo caso é Denise Cote, de Nova York.

Cote decide que especialistas não conseguiram comprovar associação entre Tylenol e autismo.

Declaração do secretário de Saúde

Robert F. Kennedy Jr, secretário de Saúde dos EUA e notório negacionista, declara que vai determinar a causa do autismo em até cinco meses: "saberemos o que causou a epidemia de autismo e seremos capazes de eliminar essas exposições".

O movimento recente do governo americano vem na esteira da publicação de uma revisão publicada pela revista "Environmental Health", que concluiu que haveria associação — e não relação causal — entre o uso de paracetamol por pessoas grávidas e o autismo em bebês. O estudo, no entanto, conclui que, embora a associação exija cautela, "febre e dor maternas não tratadas apresentam riscos como defeitos do tubo neural e parto prematuro, exigindo uma abordagem equilibrada". A recomendação é que seja feito um uso criterioso do paracetamol — na menor dose eficaz, na menor duração — sob orientação médica, "adaptado a avaliações individuais de risco-benefício, em vez de uma limitação ampla". Vale ressaltar que especialistas questionam a conclusão do artigo e dizem que a metodologia adotada não permitiria fazer afirmações sobre a relação entre o medicamento e o transtorno.

O presidente americano Donald Trump, junto de Robert F. Kennedy Jr., anuncia que a FDA (Food and Drug Administration, agência regulatória americana) passará a contraindicar o paracetamol para pessoas grávidas. Após a fala, a Casa Branca publica um link com estudos que supostamente mostrariam a correlação entre o medicamento e o autismo — entre eles, a revisão da "Environmental Health".

Conflito de interesses

O "New York Times" publica uma reportagem que afirma que o principal autor da revisão citada por Trump e RFK Jr., Andrea Baccarelli, tem evidente conflito de interesses no assunto: ele recebeu ao menos US$ 150 mil para servir como testemunha contra a farmecêutica responsável pelo Tylenol na Justiça americana em 2023. Na ação, o juiz responsável concordou com os advogados de defesa, que argumentaram que Baccarelli fez "cherry-picking" — nome dado à técnica de escolher estudos que corroboram uma tese e deixar de lado aqueles que contrariam a hipótese.

Ao Aos Fatos, a Kenvue, fabricante do Tylenol, afirmou que o paracetamol é a opção mais segura de analgésico para gestantes e que não tratar febres e dores durante o período pode trazer riscos ao feto.

“Acreditamos que a ciência independente e sólida mostra claramente que o uso de paracetamol não causa autismo. Discordamos fortemente de qualquer sugestão em contrário e estamos profundamente preocupados com o risco à saúde que isso representa para as gestantes”, diz a empresa.

Após a divulgação do relatório pelo governo americano, a Kenvue viu suas ações caírem. Uma reportagem do New York Times mostrou que a empresa tentou contato com o secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., antes do anúncio de Trump, mas não conseguiu reverter a decisão.

Em uma tentativa de conter a crise, a empresa atualizou seu site neste mês para incluir a informação de que não há estudos sólidos que liguem o paracetamol ao autismo.

Paracetamol causa autismo?

Organizações de saúde e especialistas consultados pelo Aos Fatos concordam que não há evidências científicas robustas que comprovem que o paracetamol, também conhecido por acetaminofeno, cause TEA.

Estudos mais amplos, como o publicado em 2024 no periódico JAMA, que avaliou 2,4 milhões de crianças nascidas entre 1995 e 2019 na Suécia, não encontraram associação entre o fármaco e o risco de autismo, TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) ou deficiência intelectual.

Um desafio para os pesquisadores do tema, conforme explicou Anderson Joel Martino Andrade, professor do Departamento de Fisiologia da UFPR (Universidade Federal do Paraná), é que não é possível realizar estudos clínicos para testar a segurança de medicamentos em populações vulneráveis. Por isso, as pesquisas sobre o assunto são todas de caráter observacional.

“Individualmente, esses estudos observacionais não indicam relação causa e efeito, pois estão sujeitos a uma série de ‘fatores de confusão’”, afirmou Andrade.

Os “fatores de confusão” ocorrem quando uma variável relacionada com o desfecho de um estudo é analisada de modo inadequado, o que leva a uma conclusão enganosa.

O psiquiatra Vinícius Barbosa, coordenador do subnúcleo de autismo do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, explica da seguinte maneira: mulheres que usam paracetamol durante a gravidez já tenderiam a ter um estado de saúde mais frágil ou infecções e doenças pré-existentes. Não é correto, portanto, desconsiderar esses e outros fatores e alegar que o desenvolvimento de TEA em seus filhos teria ligação com o paracetamol.

A imagem mostra Donald Trump, homem de pele clara e cabelo loiro, usando terno azul-escuro, camisa branca e gravata azul, falando em um púlpito com o selo presidencial dos Estados Unidos. À esquerda, está um homem de pele clara e cabelo grisalho curto, vestindo terno azul e gravata listrada. À direita, há uma mulher de pele clara e cabelo castanho ondulado na altura dos ombros, vestindo paletó azul-escuro e blusa clara, e outro homem de pele clara e cabelo grisalho, com terno escuro, camisa branca e gravata vermelha. Ao fundo, é possível ver uma bandeira dos Estados Unidos, prateleiras com livros e parte de um quadro emoldurado.
Fala de Trump acontece meses depois de secretário de Saúde americano dizer que encontraria cura para a ‘epidemia de autismo’ nos EUA (Reprodução)

Esse é o caso, no entanto, dos estudos apresentados pela Casa Branca. As pesquisas sugerem que o uso de paracetamol em gestantes, especialmente no final da gravidez, poderia causar efeitos neurológicos de longo prazo em seus filhos.

A biomédica e neurocientista Mellanie Fontes-Dutra analisou, a pedido do Aos Fatos, as quatro publicações científicas citadas pelos americanos e encontrou diversas fragilidades:

  • Liew, 2019: o estudo investigou a relação do TDAH, e não do autismo, com o medicamento e usou a metodologia do autorrelato materno e da declaração de diagnóstico, sem comprovação clínica;
  • Bauer, 2021: o texto é uma declaração de consenso, não um estudo. Além disso, ele não considera pesquisas e metanálises recentes que sejam contrárias à hipótese;
  • Ji, 2020: a pesquisa se baseia em uma população pequena, o que não permite generalizar os resultados para um público mais amplo;
  • Baccarelli, 2025: faltam dados de controle, como dosagem e tempo de exposição, além de fatores socioeconômicos e ambientais. Dos 46 estudos analisados, apenas dois tiveram controle genético e familiar — e, quando isso foi feito, os pesquisadores não encontraram associação entre o uso do remédio e o transtorno.

Mas a própria bula não contraindica o uso por gestantes?

Após diversas entidades e pesquisadores desmentirem Trump, usuários nas redes passaram a alegar que a bula do próprio medicamento diz que ele seria contraindicado para pessoas grávidas. Mas não é bem assim.

Apesar de a bula do Tylenol, e de suas versões genéricas (veja aqui, aqui e aqui), informar que ele não deve ser tomado por gestantes sem orientação médica, isso não necessariamente demonstra um risco para a grávida ou o feto.

O paracetamol é um fármaco de categoria B, o que significa que pesquisas em animais não demonstraram risco fetal. O aviso da bula se dá porque não existem estudos controlados em mulheres grávidas, por questões éticas.

Anderson Joel Martino Andrade ressalta, no entanto, que são necessárias pesquisas adicionais para comprovar que o remédio não causa nenhum tipo de risco à saúde da gestante e do feto. E mesmo pesquisas que não encontrem associação não devem ser interpretadas como prova definitiva de ausência de risco, de acordo com o especialista.

“É fundamental aumentar a conscientização da população e de profissionais de saúde de que o paracetamol é um medicamento que não está livre de riscos na gestação. As recomendações atuais indicam que o uso do paracetamol na gestação deve ocorrer sempre com indicação médica”, pontua o especialista.

A imagem mostra comprimidos brancos com a inscrição em vermelho ‘TYLENOL 500’, alguns deles dentro de um frasco branco inclinado e outros espalhados na superfície clara à frente da embalagem.
A FDA recomendou cautela no uso paracetamol para febres leves durante a gravidez, mas afirmou que o medicamento é o analgésico de venda livre mais seguro durante a gestação (Austin Kirk/Wikimedia Commons)

Existe cura para o autismo?

Não existe cura para autismo, porque não se trata de uma doença, mas de um transtorno de neurodesenvolvimento.

“O que temos são tratamentos e apoios que melhoram a qualidade de vida e a funcionalidade da pessoa autista, como terapias multiprofissionais, intervenções psicoeducacionais e medicamentos para sintomas associados, quando necessários”, afirma o psiquiatra Vinícius Barbosa.

O autismo possui genética complexa, heterogênea e de herdabilidade elevada, sendo atualmente conhecidos cerca de 300 genes associados a ele.

A associação Autistas Brasil afirmou, em nota à imprensa, que o aumento de diagnósticos de autismo observado nas últimas décadas não é epidemia nem crise de saúde pública, mas reflexo de um maior acesso à avaliação e ao diagnóstico, especialmente entre grupos historicamente invisibilizados, como mulheres e pessoas negras.

O vice-presidente da entidade, Arthur Ataide Ferreira Garcia, classificou ainda as declarações de Trump como parte de um projeto político de apagamento das pessoas com deficiência.

Outro lado

Aos Fatos entrou em contato com a deputada Júlia Zanatta e com o influenciador Francisco Cardoso, que não responderam até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.

O caminho da apuração

Aos Fatos buscou estudos e posicionamentos de organizações de saúde sobre o tema. Também entrevistamos especialistas para questionar qual o atual consenso científico sobre a relação entre o paracetamol e o autismo e também para desmentir as alegações feitas pelo presidente americano Donald Trump.

Entramos ainda em contato com as fabricantes do medicamento no Brasil — Kenvue, Neo Química, União Química e EMS. Apenas a Kenvue se manifestou. Por fim, também contatamos a deputada Júlia Zanatta e o influenciador Francisco Cardoso para abrir espaço para comentários.

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