Em entrevista à Folha de S.Paulo na última quarta-feira (6), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) definiu a vitória de Donald Trump como um “passo importantíssimo” para seu retorno às urnas em 2026.
Ele defende que o apoio do americano poderia ajudar a garantir o perdão aos crimes eleitorais pelos quais foi condenado pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) a ficar inelegível por oito anos.
A oposição também sinalizou que a vitória republicana pode exercer pressão política pela anistia dos condenados pelo 8 de Janeiro. Um dos projetos que propõe o perdão dos crimes dos golpistas está em discussão no Congresso e foi usado como moeda de troca nas negociações para a escolha das novas Mesas Diretoras, que ocorre em fevereiro do ano que vem.
O presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, por exemplo, disse que a pauta seria a condição para que o partido, hoje com o maior número de deputados, apoiasse os candidatos à presidência da Câmara e do Senado. O PT, por outro lado, atua para tentar enterrar a proposta.
Pronto para ser votado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, o PL da Anistia foi retirado da pauta no final de outubro por decisão do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). O deputado anunciou a criação de uma comissão especial para analisar o texto. Apesar de o projeto ter voltado à estaca zero, Lira já disse que a proposta “terá solução” em seu mandato.
O texto tem suscitado discussões políticas e jurídicas, tanto em relação à sua constitucionalidade quanto sobre a possibilidade de abarcar os ilícitos eleitorais cometidos por Bolsonaro. Aos Fatos consultou especialistas para responder às principais dúvidas:
- O que é anistia?
- O que diz o PL da Anistia?
- O projeto é constitucional?
- Bolsonaro está incluído nesse projeto?
- É possível anistiar Bolsonaro e torná-lo elegível novamente?
1. O que é anistia?
Anistia é o processo pelo qual há a extinção da punibilidade de um crime. A concessão da anistia é uma prerrogativa do Congresso Nacional, garantida pela própria Constituição Federal.
A Constituição, no entanto, veda o perdão a determinados crimes:
“A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”, determina o artigo 5º da Carta.
Diferentemente do indulto, que é concedido de maneira individual, a anistia é coletiva: ela extingue as consequências penais de um determinado tipo de infração, beneficiando, assim, toda e qualquer pessoa que tenha vindo a cometê-la durante o período estipulado.
Aprovada via projeto de lei, a anistia pode ser concedida a crimes políticos e eleitorais, penas de suspensão de direitos políticos e para ilícitos cometidos por servidores públicos.
2. O que diz o ‘PL da Anistia’?
O projeto que vem sendo debatido na Câmara é o PL 2.858/2022, de autoria do deputado Major Vitor Hugo (PL-GO). Na redação atual, ele determina o perdão dos crimes de todos que participaram de manifestações políticas em qualquer lugar do país entre 30 de outubro de 2022 e a data de entrada em vigor do texto.
O projeto propõe o perdão de “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Em sua justificativa, o PL classifica as manifestações como “legítimas e conduzidas espontaneamente por cidadãos indignados pela forma como se deu o processo eleitoral” em 2022. A redação contraria os indícios apontados pelas investigações da PF, que mostram que houve financiamento por trás dos tumultos de cunho golpista.
Como segue um regime de tramitação ordinário, o projeto deve ser avaliado por uma comissão especial e pela CCJ antes de ser apreciado em plenário. Para ser aprovado, ele precisa garantir maioria simples — mais de 50% dos votos dos parlamentares presentes.
Depois disso, ele segue um rito semelhante no Senado e, por fim, pode ou não ser sancionado pelo presidente da República.
Outros projetos. Além do PL 2.858/2022, outros projetos em tramitação defendem a anistia de Bolsonaro ou dos condenados pelo 8 de Janeiro:
- O PL 5.064/2023, de autoria do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), anistia “quem tenha sido ou venha a ser acusado ou condenado” especificamente pelo crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito pelo 8 de Janeiro. Atualmente, o texto está na Comissão de Defesa da Democracia;
- Já a PEC 70/2023, de iniciativa do senador Márcio Bittar (União Brasil-AC) e outros parlamentares, “concede anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023 e restaura os direitos políticos dos cidadãos declarados inelegíveis em face de atos relacionados às Eleições de 2022”. O projeto está parado na CCJ do Senado, aguardando designação do relator.
3. O projeto é constitucional?
Especialistas consultados pelo Aos Fatos não veem inconstitucionalidade no PL 2.858/2022.
Saulo Stefanone, especialista em direito constitucional e público, por exemplo, cita que o projeto perdoa crimes que não estão na lista de delitos insuscetíveis à anistia:
“A Constituição diz assim, com clareza, de saída, o que não está sujeito a anistia: prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas, terrorismo e crimes definidos como hediondos. Se os crimes que são objetos do PL não estiverem aqui nesse contexto, eles, em tese, podem ser anistiados”, disse, em entrevista ao Aos Fatos.
Rubens Beçak, especialista em direito constitucional e professor da USP, concorda. Em sua leitura, o projeto está tramitando de forma usual e respeita o instituto da anistia, que permite ao Congresso Nacional perdoar crimes de natureza ou fundamento político “em nome da pacificação nacional”.
“A anistia é um mata-borrão em um lapso temporal abarcado pelo projeto. O crime está lá, alguns já estão condenados, outros não, alguns estão até cumprindo pena, mas você vai, em nome de algo maior, possibilitar um eventual aperto de mão coletivo, uma conciliação”, ressaltou Beçak.
Supremo. Carla Nicolini, membro consultor da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-SP, ressalta que, mesmo que o projeto seja aprovado pelo Congresso, ele ainda pode ser contestado no STF por meio de uma Adin (ação direta de inconstitucionalidade).
Todos os partidos políticos, inclusive os de oposição, desfrutam da prerrogativa de protocolar Adins no STF, e o instrumento é usado por siglas de todo o espectro político para contestar ações tomadas pelo Legislativo e pelo Executivo, como leis aprovadas e políticas públicas implementadas.
Um ministro do tribunal disse ao g1 em condição de anonimato que o projeto pode ser declarado inconstitucional por desvio de finalidade, já que a proposta “foi indexada à eleição de presidente da Câmara, ou seja, compra e venda de votos”.
Stefanone lembra que uma situação semelhante ocorreu no julgamento da constitucionalidade do decreto que concedeu indulto ao ex-deputado federal Daniel Silveira. Na ocasião, a tese para defender a nulidade do decreto foi o desvio de finalidade do ex-presidente Jair Bolsonaro ao editar o texto.
Durante o julgamento, a então ministra Rosa Weber afirmou que “o fim almejado com o decreto de indulto foi beneficiar aliado político de primeira hora, legitimamente condenado pelo STF”.
Vera Chemin, mestre em direito público pela FGV (Fundação Getulio Vargas), lembra ainda que o ministro Edson Fachin também já deu entendimento de que crimes contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito — pelos quais alguns invasores do 8 de Janeiro foram condenados — seriam insuscetíveis à anistia.
Segundo Chemin, apesar de haver uma “possibilidade remota” de considerar os ilícitos crimes comuns ligados a uma motivação política, os presos do 8 de Janeiro foram enquadrados em artigos como golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e destruição de patrimônio público.
“Tais crimes podem ser interpretados como de natureza política ou conexos a esta, embora o STF tenha bastante resistência, pelos menos no atual momento, de chegar a essa interpretação, o que geraria outra crise entre o tribunal e o Poder Legislativo”, afirmou ela em entrevista ao Aos Fatos.
4. Bolsonaro está incluído nesse projeto?
Da maneira como o PL está escrito hoje, não.
A redação atual defende a anistia de crimes políticos cometidos entre 30 de outubro e a data da promulgação do texto. Bolsonaro, no entanto, está inelegível até 2030 porque foi condenado por ações anteriores a esse período:
- Sua primeira condenação é referente à reunião com embaixadores ocorrida em 18 de julho de 2022. O TSE, por cinco votos a dois, entendeu que o ex-presidente cometeu abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ao propagar desinformação sobre o processo eleitoral no evento;
- Já a outra penalidade se deu por abuso de poder político e econômico durante as comemorações do Bicentenário da Independência, no 7 de Setembro daquele ano.
Carla Nicolini entende ainda que a redação do PL não abarca os ilícitos cometidos por Bolsonaro, porque o projeto anistia “crimes políticos ou com estes conexos e eleitorais”.
“Bolsonaro não foi condenado por crimes eleitorais propriamente ditos, mas sim por infrações relacionadas ao processo eleitoral”, ela explica. “Ele foi punido por abuso de poder e uso inadequado dos meios de comunicação. A anistia proposta pelo PL não se aplica a essas infrações específicas.”
5. É possível anistiar Bolsonaro e torná-lo elegível novamente?
Como as condenações eleitorais do ex-presidente não ocorreram por algum dos crimes definidos na Constituição como impossíveis de perdão, especialistas consultados pelo Aos Fatos entendem que o Congresso Nacional pode, sim, anistiar Bolsonaro.
Carlos Lula, membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e deputado estadual pelo PSB no Maranhão, por exemplo, explicou que não há nada que impeça a anistia de um crime ou ilícito eleitoral.
A anistia, no entanto, não pode ser personalizada, ou seja, se dirigir especificamente a um indivíduo: “Trata-se de um instituto jurídico de caráter geral, destinado a beneficiar um grupo de pessoas”, explica o advogado.
O projeto, portanto, só poderá abarcar Bolsonaro se o seu lapso temporal for estendido até as datas dos ilícitos do ex-presidente e anistiar todos os outros políticos condenados por abuso de poder político e econômico nesse período.
O caminho da apuração
Aos Fatos consultou a íntegra do projeto que vem sendo discutido no Congresso, além das propostas relacionadas.
Também foram entrevistados cinco especialistas — três do direito constitucional e dois do direito eleitoral, que explicaram os principais pontos de discussão sobre o tema.