Como bolsonaristas alimentaram teoria conspiratória sobre confisco de dinheiro dos bancos

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“Se eu fosse você, tirava seu dinheiro dos bancos”. Essa frase apareceu em centenas de publicações nas redes, que acumularam mais de 4 milhões de visualizações na última semana e viraram alvo de uma ação do Banco do Brasil contra bolsonaristas.

A instituição financeira, que acionou a AGU (Advocacia-Geral da União), pede que sejam adotadas medidas jurídicas para barrar os ataques contra o sistema financeiro brasileiro. O banco cita publicações dos deputados federais Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Gustavo Gayer (PL-GO) e do advogado Jeffrey Chiquini, que defende o ex-assessor especial de Bolsonaro Filipe Martins.

A argumentação dos que espalham a teoria conspiratória é a de que os bancos — em especial o Banco do Brasil, onde o ministro Alexandre de Moraes é correntista — poderiam confiscar o dinheiro da população em três cenários:

  1. Caso os Estados Unidos decidam punir as instituições financeiras que não respeitarem as sanções da Lei Magnitsky contra Moraes;
  2. Caso essas punições levem os bancos à falência;
  3. Ou até caso o próprio Moraes decida confiscar o dinheiro da população.

Nenhum dos cenários tem base na realidade: não houve qualquer tipo de sanção até o momento, seja por parte dos Estados Unidos, seja por parte do STF, e o Banco do Brasil já cancelou os cartões de Moraes para se adequar às medidas impostas pela lei americana.

A seguir, Aos Fatos explica de onde surgiu e qual o alcance dessa desinformação.

Linha do tempo da desinformação

Além dos três nomes citados pela ação do Banco do Brasil, Aos Fatos identificou centenas de outros usuários nas redes que aproveitaram o cenário de incerteza para gerar pânico. O caso surgiu da seguinte maneira:

  • No dia 18 de agosto, o ministro Flávio Dino decidiu, por meio de despacho na ADPF 1.178, que leis ou decisões judiciais estrangeiras só podem ter eficácia no Brasil se forem validadas pela Justiça brasileira;
  • Naquele mesmo dia, bolsonaristas passaram a compartilhar que a decisão de Dino colocaria as instituições financeiras em uma encruzilhada que poderia quebrar a economia;
  • Uma das publicações mais virais foi a do blogueiro foragido Allan dos Santos, no X. O post (veja abaixo), que alega que a decisão permitiria que o STF confiscasse todo o dinheiro dos brasileiros, acumula mais de 800 mil visualizações. Essa medida, no entanto, não aparece na decisão de Dino em nenhum momento;
Captura de tela de publicação no X feita por Allan dos Santos. O texto da postagem diz: ‘Em breve, o STF irá decidir sobre confiscar o dinheiro de toda a nação.’ Abaixo, aparece a imagem de um documento com o timbre do Supremo Tribunal Federal, identificado como ADPF 1178/DF. O trecho visível menciona riscos envolvendo o Sistema Financeiro Nacional e lista entidades como Banco Central e Federação Brasileira de Bancos. O documento fala sobre operações, transações, saques, depósitos e transferências, destacando eventual autorização para bloqueio de valores. Ao final, consta a assinatura do ministro Flávio Dino.
Post em que Allan dos Santos espalha teoria conspiratória sobre confisco de dinheiro chegou a 800 mil visualizações no X (Reprodução/X)
  • Ainda naquele dia, também passaram a circular publicações em diversas redes com alertas para que as pessoas “tirassem seu dinheiro dos bancos” ou comprassem moeda estrangeira;
  • Um dia depois, em vídeo publicado no seu canal do YouTube com mais de meio milhão de visualizações, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) afirmou que a decisão de Dino não mudaria a situação de Moraes: “a decisão é tua, Brasil. Se vocês quiserem colocar ali, Alexandre Moraes, conta bancária, no Banco do Brasil, o Banco do Brasil vai ser cortado desse relacionamento internacional. Isso não é pouca coisa, isso leva o banco à falência”;
  • No dia 20, a imprensa noticiou que os cinco principais bancos brasileiros —Itaú, BTG, Bradesco, Banco do Brasil e Santander — perderam R$ 42 bilhões em valor de mercado após a decisão de Dino. Segundo as reportagens, o temor de punições aos bancos que não cumprissem a Lei Magnitsky fez com que o preço das ações caísse;
  • Eduardo, em entrevista à Record News, comentou essa notícia no mesmo dia e disse que isso mostraria que os bancos brasileiros poderiam quebrar por conta das sanções de Trump;
  • Na mesma data, a Reuters publicou uma entrevista com o ministro Alexandre de Moraes com o título “Moraes diz que bancos podem ser punidos se aplicarem sanções dos EUA a ativos brasileiros”;
  • Bolsonaristas, então, passaram a compartilhar o título para sugerir que o próprio ministro poderia adotar medidas que resultassem em um confisco. Um exemplo é o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO), que alertou seus seguidores a sacar seu dinheiro. O post foi replicado por diversos sites de direita, acumulando mais de 1,5 milhão de visualizações em diversas redes;
Captura de tela de uma publicação no X feita por Gustavo Gayer. O texto do post diz: ‘Tirem seu dinheiro dos bancos. Moraes vai quebrar o Brasil.’ Abaixo, aparece a reprodução de uma manchete atribuída à Reuters, na editoria de Economia, com o título: ‘EXCLUSIVO – Moraes diz que bancos podem ser punidos se aplicarem sanções dos EUA a ativos brasileiros’.
Gustavo Gayer (PL-GO) compartilhou título da Reuters sugerindo que população sacasse dinheiro dos bancos (Reprodução/X)
  • Em nenhum momento da entrevista, no entanto, Moraes ameaçou aplicar qualquer medida que pudesse resultar no confisco do dinheiro guardado nos bancos;
  • Nos dias seguintes, influenciadores — como Paulo Figueiredo Filho e o pastor Sandro Rocha — também passaram a fazer afirmações semelhantes nas redes.

As publicações, portanto, insinuam que o dinheiro dos brasileiros estaria em perigo, seja por conta de uma eventual decisão de Moraes, seja por uma nova sanção da Lei Magnitsky ou até pela falência ou fuga dos bancos do Brasil.

Apesar de já ter havido casos em que os EUA multaram bancos por descumprirem sanções impostas pela Lei Magnitsky, não há nenhum indicador no cenário brasileiro que aponte que decisões do STF possam resultar no confisco do patrimônio da população.

“Não vejo qualquer possibilidade de o dinheiro da população brasileira ser confiscado como resultado da atual sanção da Lei Magnitsky, combinada com o voto do ministro Dino. Não há previsão, nem conheço qualquer histórico de aplicação generalizada de um reflexo de uma sanção individual recair sobre o dinheiro de toda uma população”, explicou Ricardo Inglez, professor da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado) e responsável pela área de Comércio Internacional da IW Melcheds Advogados.

Além disso, mesmo com a decisão de Dino, Moraes já foi atingido pela sanção e não houve qualquer tipo de represália do magistrado contra a instituição bancária: no dia 21, o ministro teve seus cartões bloqueados pelo Banco do Brasil. Moraes tinha um Visa e um Mastercard, bandeiras sediadas nos EUA.

Aos Fatos entrou em contato com a assessoria de Eduardo, Gayer e Dos Santos para que eles pudessem comentar a reportagem, mas não houve resposta até a publicação deste texto.

Garantias

Mesmo no cenário de falência dos bancos, a legislação brasileira garante a proteção de parte do dinheiro guardado nas instituições.

O FGC (Fundo Garantidor de Crédito), instituição privada sem fins lucrativos, atua para manter a estabilidade do sistema financeiro nacional e proteger depositantes e investidores em caso de falência ou crise das instituições. Em situações como essa, o fundo garante a restituição de até R$ 250 mil ao correntista.

Também há cláusulas de proteção ao confisco na Constituição brasileira. Em 2001, foi promulgada a Emenda Constitucional 32, que veda ao presidente da República a edição de medidas provisórias que tenham como objetivo sequestrar bens, poupanças e qualquer ativo financeiro. A medida foi tomada após o governo Collor confiscar nos anos 1990 as cadernetas de poupança de milhões de brasileiros.

Por fim, não há precedentes que autorizem o ministro Alexandre de Moraes ou qualquer outro magistrado do STF a confiscar o dinheiro depositado em bancos.

Posicionamento oficial. No último domingo (24), o Banco do Brasil denunciou à AGU (Advocacia Geral da União) a disseminação de desinformação com “potencial de gerar pânico e comprometer a estabilidade do sistema financeiro”.

Procurada pelo Aos Fatos, a assessoria do banco enviou uma nota pública em que afirma que irá tomar medidas legais contra os autores das alegações enganosas e que está “preparado para lidar com temas complexos e sensíveis que envolvem regulamentações globais”.

Já o STF afirmou, em nota, que nunca tomou nenhuma decisão que pudesse gerar o confisco de bens da população.

Aos Fatos também entrou em contato com o Banco Central, que não respondeu até a publicação desta reportagem.

‘Nós avisamos’

No último dia 20, o deputado Evair Vieira de Melo (PP-ES) subiu à tribuna para comentar sobre o tema e começou pedindo desculpas a todos alegando que, no início do governo Lula, teria negado a possibilidade de confisco do dinheiro nos bancos.

“E eu, naturalmente, pensando na razoabilidade, no bom senso, disse: ‘Essa hipótese é uma hipótese que pode ser eliminada, porque não há nenhuma chance’. (...) O Ministro Alexandre de Moraes, para salvar sua própria pele, chega a trabalhar com a hipótese de confiscar o ativo dos bancos. Ora, automaticamente, vai entrar nesse bolo a parte dos correntistas dos bancos”, disse Melo.

O medo de um eventual “confisco” não é novidade e tem sido alimentado por bolsonaristas de tempos em tempos:

  • Ainda em 2018, publicações falsas atribuíam ao plano de governo do então candidato Fernando Haddad (PT) uma proposta que previa o confisco de recursos e o compartilhamento de quartos vazios em casas de família. Isso foi desmentido pelo Aos Fatos;
  • Nas eleições de 2022, viralizou a história de que Lula teria declarado que iria bloquear poupanças por seis meses para manter o Auxílio Brasil — o que também era falso;
  • Peças semelhantes também circularam no início do mandato do petista, com falsas alegações de que o Congresso iria votar uma “poupança fraterna”. Mais uma vez, a história foi desmentida.

Colaborou Milena Mangabeira.

O caminho da apuração

Aos Fatos buscou publicações com as expressões “tire seu dinheiro dos bancos” ou “confisco” publicadas nas últimas semanas e as contextualizou de acordo com os acontecimentos referentes à Lei Magnitsky e à decisão do ministro Flávio Dino. Destacamos as publicações mais virais publicadas por pessoas públicas e influenciadores.

Questionamos advogados sobre a possibilidade de um confisco e também entramos em contato com o Banco do Brasil, o Banco Central e o STF. Também entramos em contato com as assessorias dos deputados Eduardo Bolsonaro e Gustavo Gayer e do blogueiro Allan dos Santos.

Referências

  1. Folha de S.Paulo
  2. STF
  3. CNN Brasil (1, 2 e 3)
  4. YouTube (Eduardo Bolsonaro) (1 e 2)
  5. Reuters
  6. g1
  7. O Globo
  8. FGC
  9. Planalto
  10. Uol
  11. Banco do Brasil
  12. Câmara dos Deputados
  13. Aos Fatos (1, 2 e 3)

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