Desde o final de abril, grande parte do Rio Grande do Sul foi atingida por chuvas intensas, que deixaram cidades inteiras debaixo da água e causaram até agora ao menos 148 mortes e 124 desaparecimentos. Uma combinação de fenômenos meteorológicos agravada pelas mudanças climáticas fez com que o estado batesse recordes de precipitação: em 15 dias, choveu o equivalente a cinco meses.
A crise, que ocorre um ano depois de enchentes que já haviam devastado parte do estado, deixou 320 municípios em estado de emergência e 46 em estado de calamidade. Nas redes, peças de desinformação sobre a tragédia têm confundido a população com discursos negacionistas, acusações infundadas contra o poder público e orientações falsas, que contrariam as recomendações de autoridades.
Abaixo, Aos Fatos mostra, em cinco gráficos, a gravidade das enchentes e o histórico de desastres no estado. Com o auxílio de especialistas, também explicamos quais fatores agravam os efeitos da crise climática no território gaúcho.
1. A extensão da crise
De acordo com o último boletim publicado pela Defesa Civil do Rio Grande do Sul, 446 dos 497 municípios gaúchos foram atingidos pelas enchentes, e 2,1 milhões de pessoas (19,4% da população do Estado) foram afetadas, sendo que 538 mil delas estão desalojadas.
Foram confirmadas 148 mortes e ainda há ao menos 124 desaparecidos.
Especialistas consultados pelo Aos Fatos apontam que a crise foi causada por fatores meteorológicos extremos, agravados pelas mudanças climáticas. Carlos Nobre, um dos maiores especialistas em aquecimento global, explica que a região enfrentou uma condição chamada de bloqueio atmosférico, que impede que frentes frias avancem para outras regiões. O principal efeito é que fenômenos que deveriam permanecer por pouco tempo em uma região não conseguem se deslocar para outros locais.
O bloqueio também contribuiu para agravar o El Niño, responsável por aumentar o volume de chuvas no Sul. O fenômeno que aquece as águas do Pacífico altera os padrões de vento e pressão da atmosfera.
Esses eventos, que são comuns e ocorrem há milhões de anos, geraram chuvas recorde por conta da influência das mudanças climáticas, explica Nobre. “O planeta está muito mais quente, o ar tem muito mais umidade, os episódios de chuva todos estão ficando mais fortes no planeta”, ressaltou o cientista, lembrando que 2023 foi o ano mais quente dos últimos 125 mil anos.
“Fenômenos naturais que eram extremos muito lentos — por exemplo, um extremo que podia acontecer uma vez por década — agora estão acontecendo de forma mais frequente”, disse Carlos Nobre ao Aos Fatos.
2. A intensidade das chuvas
A tragédia nos municípios gaúchos começou por volta do dia 27 de abril. Dois dias depois, o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia) emitiu um alerta vermelho de chuvas intensas, que causaram as primeiras mortes já no dia 30. Além das enchentes, problemas como deslizamento de terra e falhas na rede elétrica causaram sérios danos à infraestrutura das cidades e provocaram até agora a morte de mais de uma centena de pessoas.
Em dez dias, alguns municípios registraram chuvas de até 600 milímetros, segundo dados do Inmet, do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) e da ANA (Agência Nacional de Águas).
A metodologia do Inmet estipula como alerta vermelho — o mais grave, com alto risco de alagamento — níveis acima de 100 milímetros diários. Cada milímetro de chuva corresponde a 1 litro de água por metro quadrado.
O monitoramento do Inmet em algumas das principais cidades gaúchas (veja o gráfico acima) mostra que a chuva acumulada até a metade de maio já supera os volumes registrados em todos os meses anteriores do ano. A disparidade é mais acentuada em Canela, cidade da Serra Gaúcha, que registrou 621,8 milímetros neste mês, contra 325 milímetros no mês passado. Ao menos duas pessoas morreram no município em decorrência das enchentes, segundo a Defesa Civil.
Em Porto Alegre, o volume de chuvas foi comparado à inundação histórica ocorrida em 1941, quando outro evento climático extremo levou o lago Guaíba a 4,76 metros.
Dados do Inmet mostram que a precipitação registrada até o dia 13 de maio, de 341,7 milímetros, só perde nos últimos 108 anos para a registrada naquela época, quando chegou a chover 405,5 milímetros.
🌧️ #Chuva: Maio de 2024 é o segundo mais chuvoso em Porto Alegre (RS) nos últimos 108 anos.
— INMET (@inmet_) May 13, 2024
📈 Conforme a tabela acima, até as 9h desta segunda-feira (13), o volume de chuva, em maio, na capital do Rio Grande do Sul soma 341,7 milímetros (mm). pic.twitter.com/SMr9GT503l
Para além das chuvas, a tragédia foi intensificada pelo transbordamento dos rios que banham o estado e deságuam no Guaíba, em Porto Alegre. “Foram três dias de chuvas intensas — 30 de abril, 1º e 2 de maio —, que aconteceram em uma área muito grande do Rio Grande do Sul. Essas chuvas caíram sobre bacias ou rios que drenam para Porto Alegre, como por exemplo o Jacuí, o Pardo, o Taquari-Antas, e causaram cheias históricas”, explicou ao Aos Fatos Anderson Ruhoff, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
3. A cheia e suas causas
Um dos principais marcos da catástrofe associada às enchentes é o nível do Guaíba, que banha Porto Alegre e outros municípios da região metropolitana. No último dia 5, o volume do Guaíba chegou à marca histórica de 5,33 metros — a cota de inundação, marco referencial para situações de crise, é de 3 metros.
Até o dia 3 de maio, o recorde de cheia do Guaíba ocorrera no evento climático de 1941. Naquela época, uma chuva de cerca de 870 milímetros ao longo de 24 dias elevou o nível do lago para 4,76 metros. Porém, a cheia de 60 anos atrás ocorreu de forma mais gradual, segundo explicou Fernando Dornelles, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, em entrevista ao g1.
O gráfico acima, com dados de 1º de janeiro a 13 de maio, mostra como o nível do Guaíba na altura do cais Mauá subiu rapidamente: de cerca de 1,3 metro, no dia 30 de abril, para 5,33 metros em 5 de maio. Após cair de forma gradual, o nível voltou a subir e atingiu 5,21 metros nesta terça-feira (14).
O Guaíba recebe água de diversos rios que correm pelo interior do estado. De acordo com Anderson Ruhoff, o corpo d’água tem uma característica híbrida que faz com que leve mais tempo para que o nível diminua. Outro fator que mantém as cheias por mais tempo é o caminho das águas: o Guaíba, que tem largura de até 20 quilômetros, desemboca na Lagoa dos Patos, cujo canal de conexão com o oceano é muito mais estreito — são cerca de 2 quilômetros de largura.
“Esses rios todos que sofreram com as chuvas — o Jacuí, o Pardo, o Taquari — receberam volumes de chuva assustadores e têm distâncias diferentes até a cidade de Porto Alegre. Então, essa água que vem do interior, vem de regiões altas, regiões de serra, e chega em tempos diferentes, mas ela vai se acumulando no Guaíba e provocando uma cheia muito mais lenta”, explica o professor.
4. Histórico de desastres
Entre 1991 e 2022 — últimos dados disponíveis —, o Rio Grande do Sul enfrentou 3.030 desastres hidrológicos, que deixaram 650 mil desabrigados e desalojados e causaram um prejuízo público estimado de R$ 2,58 bilhões. Os números são do Atlas Digital de Desastres no Brasil, mantido pelo Ministério do Desenvolvimento Regional. O levantamento contabiliza fenômenos como alagamentos, chuvas intensas, enxurradas e inundações.
A análise da série histórica permite observar um aumento na frequência de picos de eventos extremos, que se tornaram mais comuns por volta de 2010.
A quantidade de eventos registrados nesses picos também aumentou e chegou a um ponto máximo de 280 ocorrências em 2017. Como não há dados sobre as enchentes que ocorreram no estado em 2023, pode ser que haja picos mais recentes.
As chuvas deste ano já causaram mais mortes do que a soma de todos os desastres hidrológicos ocorridos no estado entre 1991 e 2022. No intervalo de 30 anos, 121 pessoas morreram. Só em 2024, até agora, foram ao menos 148 mortes.
Levantamento feito pelo Conselho Nacional dos Municípios a pedido do Valor Econômico indicou que a crise no Rio Grande do Sul figura entre os seis maiores desastres naturais já ocorridos no Brasil, junto de casos como o das chuvas que devastaram a região serrana do Rio em 2011 e deixaram 947 mortos, e os deslizamentos e inundações que causaram 130 mortes em Pernambuco, Alagoas e Paraíba em 2022.
5. Fatores de risco
O agravamento da crise climática é um fenômeno mundial, e o aumento na frequência de eventos extremos não é uma particularidade do Rio Grande do Sul. O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) afirmou em relatório do ano passado que há alta confiança de que o aquecimento global tornará os eventos extremos mais intensos em um curto prazo e que devem ocorrer mais desastres compostos e em cascata, que serão mais difíceis de gerenciar.
Apesar de esses efeitos serem sentidos no mundo todo, há alguns fatores de risco que podem aumentar o impacto das crises em determinadas localidades.
O desmatamento dos principais biomas do Rio Grande do Sul — Mata Atlântica e Pampa — diminui a capacidade do solo de absorver a água das chuvas e facilita a ocorrência de enchentes, aponta Carlos Nobre.
Entre 1986 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu 43% de sua vegetação primária no Pampa e na Mata Atlântica, de acordo com dados do projeto MapBiomas. O desmatamento abre pastos para a pecuária e campos para a agricultura, que saturam o solo. Em chuvas intensas, a água que corre causa erosão e transforma os rios em lama, explica Nobre.
“Quando você desmata muito os biomas naturais, o mesmo volume de chuva que cai causa uma inundação maior, porque você tem muito menos água retida na vegetação, no solo”, afirma o cientista.
A negligência do poder público é outro fator que pode agravar e acelerar a ocorrência de eventos climáticos extremos, conforme ambos os especialistas apontaram ao Aos Fatos.
Em nota publicada após as enchentes do ano passado, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS sugeriu uma série de medidas para reduzir a vulnerabilidade do estado frente a eventos extremos, como instalação de uma densa rede de monitoramento hidrológico e a elaboração de estudos regionais de saneamento em áreas inundáveis. Segundo Anderson Ruhoff, no entanto, as sugestões não foram acatadas pelo governo estadual ou pela Prefeitura de Porto Alegre.
Uma reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que o governo de Eduardo Leite flexibilizou quase 500 normas ambientais desde 2019.
“É importante que a partir de agora a gente considere a questão das mudanças climáticas e da ocorrência de eventos extremos na proteção da população dessas áreas que são mais vulneráveis, isso é crucial. A gente precisa incluir a questão de eventos extremos e mudanças climáticas nas discussões políticas que vão se suceder a esse caso”, afirmou o pesquisador.
CORREÇÃO: Esta reportagem foi atualizada às 12h42 do dia 15 de maio de 2024 para corrigir informações sobre o Guaíba e a Lagoa dos Patos. O Guaíba tem até 20 quilômetros de largura — não de extensão, como informado anteriormente —, assim como o canal que liga a Lagoa dos Patos ao oceano tem cerca de 2 quilômetros de largura, não de extensão.