Octacílio Barbosa/Alerj

🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Dezembro de 2018. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

Checamos o que Flávio Bolsonaro disse sobre segurança pública em entrevista à GloboNews

Por Luiz Fernando Menezes

6 de dezembro de 2018, 13h39

Ao defender que o Brasil precisa endurecer o tratamento de pequenos delitos e aumentar o número de prisões, o senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) utilizou informações erradas sobre conversão de pena de prisão em penas restritivas de direitos e citou uma correlação entre encarceramento e criminalidade que não é consenso entre especialistas. O filho do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) foi o primeiro entrevistado do Central da Transição, da GloboNews.

Veja abaixo, em detalhes, três declarações que checamos:


INSUSTENTÁVEL

Hoje muitas condenações de crimes, que são crimes violentos, por terem uma pena mínima muito baixa, acabam sendo transformados em punições de prestações de serviços, por exemplo.

Diferentemente do que disse o senador eleito, a pena de prisão só pode ser convertida em penas restritivas de direitos — como prestação de serviço comunitário e perda de bens e valores — nos casos em que o crime não foi cometido com violência ou grave ameaça à vítima. A única exceção são casos em que a pena do crime violento não excede dois anos, quando o juiz pode suspendê-la e trocá-la por serviços comunitários, por exemplo. Mesmo considerando essa exceção, não existem dados sobre quantas penas foram suspensas. Assim, não é possível dizer se há ou não muitas condenações convertidas, o que leva a declaração de Flavio Bolsonaro à classificação INSUSTENTÁVEL.

Segundo o Artigo 44 do Código Penal Brasileiro, as penas restritivas de direitos só substituem as penas privativas de liberdade quando o indivíduo cumpre três requisitos:

1. a pena aplicada não for superior a quatro anos e “o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa” ou se o crime for doloso;

2. o réu não for reincidente em crime doloso;

3. se os antecedentes do condenado indicarem que essa substituição seja suficiente. Tais substituições de penas são permitidas desde a Lei 9.714/98, que alterou a redação do Código Penal.

É possível, no entanto, que crimes violentos com penas pequenas, como lesão corporal, tenham a pena suspensa em vez de convertida em pena restritiva de direito. Para isso, a pena não pode ser superior a dois anos e não pode ser um crime previsto na Lei Maria da Penha. Nesses casos, o juiz pode determinar certas condições a serem cumpridas em um período por ele fixado, como prestação de serviços à comunidade ou limitação de fim de semana.

Como a pena do crime violento tem que ser menor do que dois anos para poder ser suspensa, são raros os casos nos quais isso ocorre. Segundo o professor de Direito Penal da FGV Davi Tangerino, procurado pela reportagem, na prática a suspensão ocorre só em tentativas de crimes violentos, como roubo tentado, ou lesões corporais, que podem ter penas menores do que dois anos.

Aos Fatos não encontrou nenhuma base de dados com o número de casos de suspensão da pena de crimes violentos com penas pequenas. O relatório do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), por exemplo não traz o número de penas suspensas, muito menos o detalhamento de se os crimes julgados eram violentos ou não.

Além disso, não há definição de violência no Código Penal Brasileiro. O entendimento do que é ou não crime violento às vezes fica a cargo da jurisprudência e da doutrina.

Flávio Bolsonaro disse na entrevista que a agenda da segurança pública será prioritária logo no começo de seu mandato. Ele ressaltou algumas propostas, como a redução da maioridade penal e uma “atualização” da legislação penal, com o aumento das penas mínimas.

No caso citado pelo senador eleito, a prestação de serviços é uma pena aplicável somente às condenações superiores a seis meses de privação de liberdade. São exemplos os crimes de furto (reclusão de um a quatro anos, e multa), estelionato (de um a cinco anos, e multa) dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico (reclusão de seis meses a dois anos, e multa). A jurisdição deste tipo de pena é determinada pelo Artigo 46 do Código Penal.

Vale ressaltar que as penas de restrição de liberdade são maioria nos casos brasileiros (cerca de 65% do total). Segundo o Justiça em Números 2018, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), último publicado pela instituição, em 2017, a Justiça brasileira determinou 232 mil novas penas privativas de liberdade contra 125 mil penas alternativas. Lembrando que o número não coincide com o de pessoas presas, uma vez que o mesmo processo pode ter mais de um réu.

Além disso, a assessoria do conselho, contatada por Aos Fatos, também informou que os dados mais recentes mostram que "o que se tem é uma queda no número de penas alternativas e a ascensão no número de penas privativas de liberdade".

Outro lado. A assessoria de imprensa de Flavio Bolsonaro foi procurada para comentar a verificação, mas não se manifestou até a publicação desta checagem.


INSUSTENTÁVEL

Qualquer lugar do mundo onde a segurança pública deu certo começou se combatendo a impunidade nos crimes de menor potencial ofensivo.

A hipótese defendida por Flavio Bolsonaro nesta declaração, conhecida como “Tese da Janela Quebrada”, defende que o endurecimento do tratamento de pequenos delitos diminui a criminalidade e foi adotada pelo comissário de Polícia de Nova York de 1994 a 1996 e chefe de Polícia de Los Angeles de 2002 a 2009. No entanto, não há consenso de que foi a alta taxa de encarceramento que teria resultado na diminuição da criminalidade nas cidades, uma vez que a reforma aplicada na cidade abarcou outras mudanças na polícia, como organização e gestão. Além disso, os dados de encarceramento não mostram correlação com a diminuição da criminalidade, tanto no Brasil quanto em outros países. É por isso que a declaração foi considerada INSUSTENTÁVEL.

O senador eleito argumentou na ocasião que é necessário combater a impunidade desde os pequenos crimes: “para que esperar alguém que comete um crime pequeno, cometer um crime grande, grave, para ser tirado do convívio social?”.

No livro Fixing Broken Windows (Consertando Janelas Quebradas, em inglês) de 1998, dois pesquisadores norte-americanos, Catherine Cole e George Kelling, defenderam uma posição parecida com a de Flavio Bolsonaro. Segundo eles, os pequenos delitos, embora pareçam insignificantes, não o são, e combatê-los é fundamental para reduzir os crimes violentos. “Se tivermos um ou dois comportamentos que provocam distúrbios e não nos importarmos, em pouco tempo isso será um sinal para as pessoas de que ninguém se importa e de que o lugar perdeu qualquer referência de segurança”, disse Catherine Cole em uma entrevista à Folha de S.Paulo em 2003.

Segundo disse ao Aos Fatos um dos coordenadores do LAV (Laboratório de Análise da Violência) da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Ignacio Cano, essa tese foi adotada por Willian Bratton, que foi comissário de polícia em Nova York e em Los Angeles. Porém, Cano ressalta, não há evidências de que a prisão ou o tratamento duro contra os pequenos delitos iniba os grandes crimes.

Em 2009, a Veja entrevistou Christopher Stone, pesquisador de Harvard que acompanhou a reforma de Bratton na polícia. Segundo ele, além da prisão de bandidos em escala industrial (foram 750 mil presos em sete anos), Bratton focou na cooperação com outras forças policiais e agências de segurança, como o FBI, e numa gestão baseada em resultados. Não é possível afirmar, portanto, que o bom resultado se deu apenas por causa do encarceramento.

Na mesma edição, a revista trouxe também um diagnóstico de Bratton sobre a situação brasileira: “Vocês têm, como a maioria dos países latinoamericanos, uma força policial extremamente mal remunerada. Isso acaba induzindo à corrupção. Vocês também têm um sistema tão desorganizado que acaba comprometendo a sua habilidade de combater a criminalidade”. O comissário norte-americano também destacou como problema as diferenças entre polícias Civil e Militar: “vocês têm um sistema de classes no qual o policial militar vem de uma classe social diferente dos policiais civis. Nesse sistema, policiais militares não conseguem chegar a postos superiores. E os delegados da Polícia Civil também vêm de outra camada social, eles são todos advogados”.

É importante dizer que muitos especialistas brasileiros também divergem da posição de Flávio Bolsonaro: segundo o estudo Violência e Segurança Pública em 2023 do Ipea, publicado em 2015, uma das medidas para melhorar a segurança no país é “fomentar a aplicação de alternativas penais e a reforma do sistema penitenciário”, uma vez que, atualmente, “o monitoramento eletrônico abriu a possibilidade de iniciar um debate com a sociedade de que se podem vigiar condenados fora das prisões e unidades de internação, o que abre a real possibilidade de a prisão ser descartada como pena principal”. O coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Políticas de Segurança da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), José Luiz Ratton também defendeu, em entrevista ao jornal O Globo no ano passado, que é necessário reduzir “drasticamente” o encarceramento e humanizar as prisões.

Em 2016, Renato Campos Pinto de Vitto, então diretor-geral do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), órgão do Ministério da Justiça, disse que o encarceramento não reduz criminalidade: segundo ele, a população carcerária brasileira saltou 575% entre 1990 e 2014 sem que isso se refletisse na redução da criminalidade.

Aos Fatos também procurou dados sobre os países com a menor criminalidade do mundo. De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), Japão (0,3 homicídios por 100 mil habitantes), Luxemburgo (0,4) e Suíça (0,6) são as três nações menos violentas. Como não há dados de encarceramento nessa base de dados, utilizamos os números da World Prison Brief, da Universidade de Londres.

O Japão tem diminuído sua taxa de homicídios desde 2000, quando apresentava 0,7 casos por 100 mil habitantes. Passou para 0,5 em 2005, 0,4 em 2010 e chegou ao número de 0,3 em 2015. Em comparação, a taxa de aprisionamento subiu de 48 por 100 mil habitantes, em 2000, para cerca de 62 por 100 mil habitantes em 2005. A taxa depois entrou em queda, chegando a 57 em 2010 e 46 em 2015.

Luxemburgo, por outro lado, apresentou movimento diferente: sua taxa de homicídio cresceu de 1,2 casos por 100 mil habitantes em 2000 para 1,6 em 2005 e continuou subindo até o ano 2010, quando registrou dois homicídios por 100 mil habitantes. Em 2015, no entanto, houve uma queda e o país apresentou taxa de apenas 0,4. Em relação ao encarceramento, em 2000 o país apresentava 90 presos por 100 mil habitantes, número que subiu para 141 em 2005. Após esse período, houve leve queda em 2010 (136) e em 2015 (120).

E, por fim a Suíça: com taxa de homicídios de um caso por 100 mil habitantes em 2000 e em 2005, o país registrou uma queda para 0,7 em 2010 e para 0,6 em 2015. O encarceramento praticamente se estabilizou nesse período: em 2000 o país tinha taxa de 80 presos por 100 mil habitantes, continuou com 80 em 2005, caiu para 79 em 2010 e em 2015 fechou com 83. Os dados mostram, portanto, que não há correlação direta e visível entre o aumento de prisões e a diminuição da criminalidade em um país.

Outro lado. A assessoria de imprensa de Flavio Bolsonaro foi procurada para comentar a verificação, mas não se manifestou até a publicação desta checagem.


VERDADEIRO

A própria população, quando perguntada sobre a credibilidade das instituições, as Forças Armadas estão sempre no topo.

Como as duas principais pesquisas de confiança de instituições apontam as Forças Armadas como as mais confiáveis, a afirmação do senador eleito foi considerada VERDADEIRA.

De acordo com uma pesquisa do Datafolha publicada em junho deste ano, as Forças Armadas foram avaliadas como a instituição mais confiável das dez citadas pelo levantamento: 78% declararam confiar. Desses, 37% têm muita confiança e 41% têm um pouco. 20% declararam não ter confiança.

Outra pesquisa de confiança das instituições, a ICJBrasil, produzida pela FGV (Fundação Getúlio Vargas), apontou que, em 2017, as Forças Armadas também eram as mais confiáveis (56%), seguidas da Igreja Católica (53%) e das redes sociais (37%).

Flavio Bolsonaro usou este argumento para defender as indicações de militares a cargos no governo de seu pai.


Esta reportagem foi atualizada às 18h55 do dia 6 de dez. de 2018 para acrescentar informação do professor de Direito Penal da FGV e para corrigir a informação biográfica de Bratton. Os selos das declarações permaneceram.


Esta reportagem foi publicada de acordo com a metodologia anterior do Aos Fatos.

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