Em sua primeira entrevista exclusiva a um veículo de imprensa desde março, o presidente Lula (PT) desinformou sobre temas ligados à pauta econômica e à relação do governo com o Congresso. Para inflar o impacto de um anúncio de investimentos do setor automobilístico, por exemplo, o petista alegou que a indústria não aplicava recursos no país há ao menos 40 anos — o que é falso.
O presidente também repetiu na entrevista a alegação enganosa de que a articulação com o Legislativo tem garantido a aprovação de todas as pautas do governo e que o valor gasto pelo governo Bolsonaro com o “orçamento secreto” em 2020 era equivalente à cifra destinada a investimentos.
Veja abaixo o que checamos:
- É FALSO que a indústria automobilística não anunciava investimentos no país há 40 anos. Desde 2016, o setor inaugurou fábricas em diversas regiões e aplicou cerca de R$ 8,4 bilhões na produção de autopeças;
- Também não é verdade que o governo tem conseguido aprovar todas as suas pautas no Congresso. Desde o início do mandato, o Executivo tem sofrido sucessivas derrotas na Câmara e no Senado, dominados por parlamentares da oposição;
- O presidente engana ao alegar que o valor gasto em 2020 com as emendas de relator (RP9), que ficaram conhecidas como “orçamento secreto”, seria equivalente ao total de investimentos do governo. Dados do Siga Brasil mostram que o montante de investimentos é 200% maior.
- Diferentemente do que sugere Lula, a isenção de impostos para compras de até US$ 2.000 se aplica apenas a viagens internacionais feitas por via aérea ou marítima;
- Mesmo que esteja a uma distância de cerca de 500 km da foz do rio Amazonas, a exploração de um poço de petróleo na Margem Equatorial pode afetar o ambiente marítimo, os biomas no entorno e as comunidades que vivem na região;
- O presidente citou os valores corretos para as despesas de Previdência — que giram em torno de R$ 900 bilhões — e para as referentes às isenções fiscais — que são de R$ 646,6 bilhões;
- Também é VERDADEIRA a alegação de que as penas impostas pelo PL 1.904/2024 a gestantes que realizarem abortos são mais severas do que as impostas a condenados por estupro.
A indústria automobilística fazia 40 anos que não fazia um investimento nesse país.
Para exaltar o anúncio da indústria automotiva de que serão investidos R$ 125 bilhões até 2032 no país, Lula desinforma ao dizer que o setor não aplicava recursos no Brasil há quatro décadas. A declaração é FALSA, porque omite que montadoras inauguraram diversas fábricas ao longo dos últimos anos:
- Em maio de 2016, a Toyota inaugurou uma fábrica em Porto Feliz (SP), com um investimento total de R$ 508 milhões;
- Em junho do mesmo ano, a Jaguar investiu R$ 750 milhões em uma nova fábrica em Itatiaia (RJ);
- Em agosto de 2017, a General Motors confirmou um aporte de R$ 1,5 bilhão na fábrica de Gravataí (RS);
- Em outubro do mesmo ano, a Koito iniciou a construção de uma fábrica em Sorocaba (SP), com investimento de R$ 221 milhões;
- Dois meses depois, a JAC Motors anunciou um aporte de R$ 120 milhões para a construção de uma nova montadora em Itumbiara (GO);
- Em fevereiro de 2019, a Honda abriu a fábrica de Itirapina (SP), que estava pronta desde 2016, mas ainda não havia sido inaugurada;
- Também em 2019, a Fiat investiu R$ 7,5 bilhões em sua fábrica em Goiana (PE).
Os relatórios anuais da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) também desmentem a fala de Lula: entre 2022 e 2016, a indústria de autopeças investiu cerca de R$ 8,4 bilhões.
Além das omissões, a declaração de Lula também é incorreta porque trata uma promessa do setor como um investimento. No anúncio, feito em abril deste ano, o setor disse que irá focar em aumentar a produção de veículos, impulsionar a geração de empregos e a descarbonização do setor até 2035.
Mas algumas montadoras já haviam feito anúncios semelhantes durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). No início de 2022, por exemplo, montadoras como a chinesa Great Wall e a alemã BMW anunciaram investimentos de R$ 20,9 bilhões até 2023. Em setembro de 2022, a Renault, a Volvo e a Audi também anunciaram R$ 3,6 bilhões de investimentos só no Paraná.
Outro lado. Procurada na tarde desta terça-feira (18), a assessoria de Lula alegou que a afirmação não é falsa porque o montante anunciado em 2024 é muito maior do que o mencionado pela checagem.
Nós aprovamos tudo o que nós mandamos para o Congresso Nacional, Milton. Não houve um projeto do governo que foi recusado. Nós aprovamos tudo.
A declaração do presidente é FALSA, porque omite que o governo tem enfrentado sucessivas derrotas políticas no Congresso desde o início do atual mandato.
Ainda em maio do ano passado, o Executivo teve que negociar com deputados a manutenção dos pontos principais da medida provisória de reestruturação dos ministérios. A articulação não foi suficiente para garantir a aprovação de todo o projeto, e parlamentares transferiram atribuições do Ministério do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas ao Ministério da Agricultura e Pecuária.
Poucos meses depois, a oposição também conseguiu se articular para impedir a votação do “PL das Fake News”, que teve o regime de urgência aprovado pela Câmara. Impulsionada pelo 8 de Janeiro e pelos atentados em escolas, a proposta foi enterrada por pressão das big techs e da ala conservadora.
Ao longo dos últimos dois anos e meio, o Executivo também teve diversos vetos derrubados pelo Legislativo:
- Na semana passada, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), devolveu a medida provisória editada pelo governo para compensar as perdas de arrecadação ao limitar o uso de créditos de PIS e Cofins. A disputa se arrasta desde dezembro, quando o Congresso anulou o veto de Lula à proposta que prorroga a desoneração da folha de pagamento para 17 setores da economia. Desde então, o governo havia entrado com um recurso no STF e decidiu por fim editar a medida provisória que acabou devolvida;
- No fim de maio, parlamentares optaram por manter um trecho do projeto que impede as saídas temporárias de presos, mesmo em caso de visitas à família;
- O Congresso também votou por manter o Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos), que o governo queria extinguir, ainda que com menos recursos;
- Em maio do ano passado, foram derrubados dois trechos da regulamentação do Marco do Saneamento que beneficiavam a atuação de empresas públicas. Após diálogo com o Congresso, o presidente revogou os pontos de conflito e publicou apenas as regras que eram consenso;
- Também foi anulado o veto a um dispositivo do novo arcabouço fiscal que impedia que determinadas despesas fossem retiradas da conta do resultado primário do Orçamento.
Responsável pela articulação do governo, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), chegou a ser alvo de críticas do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que o chamou de “incompetente” e um “desafeto pessoal”. Em resposta, Lula elogiou a atuação de Padilha e disse que pretende mantê-lo no cargo. Lira depois reconheceu que errou ao ofender o ministro, mas manteve as críticas sobre a relação do governo com o Congresso.
O Congresso, quando criou o orçamento secreto, era a mesma quantidade de dinheiro que o governo tinha para fazer investimento.
A declaração de Lula é incorreta porque as emendas de relator (RP-9), que ficaram conhecidas como “Orçamento Secreto” após reportagem do Estadão em 2020, não chegaram a totalizar o mesmo montante que os investimentos públicos do governo federal naquele ano.
Se considerarmos a criação do chamado “orçamento secreto” como o momento em que a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2020 foi aprovada pelo Congresso, isso significa que o primeiro montante destinado ao pagamento das emendas de relator totalizava R$ 7 bilhões, segundo dados do Siga Brasil, plataforma de acompanhamento orçamentário mantida pelo Senado.
Naquele ano, o Orçamento previa R$ 48,6 bilhões de investimentos, mas R$ 20,9 bilhões foram pagos — descontando os valores de restos a pagar. O valor total de investimentos previstos pelo governo federal em 2020, portanto, era quase 200% maior do que o montante separado para as emendas de relator.
O valor só chega ao citado por Lula quando se leva em consideração todas as emendas — individuais, bancada (RP-7), comissão (RP-8) e de relator (RP-9). Em 2020, o governo pagou cerca de R$ 25,1 bilhões em emendas.
Lula também pode estar se referindo ao projeto enviado pelo governo Bolsonaro em 2022 para o Orçamento de 2023, que previa cerca de R$ 19,4 bilhões para as emendas de relator e cerca de R$ 22 bilhões para investimentos. O governo Lula, no entanto, pediu que a cifra fosse alterada. Ao fim, foram pagos R$ 5,4 bilhões em emendas de relator e R$ 30,7 bilhões em investimentos.
Quando alguém viaja de classe média e vai para o exterior, ele tem direito a gastar até US$ 2.000 sem pagar imposto.
A possibilidade de gastar US$ 2.000 (cerca de R$ 11.000 na cotação atual) sem o pagamento de impostos para viajantes internacionais, como citado por Lula, aplica-se somente quando a viagem é feita por avião ou pelo mar, mas não por rodovias e rios, por exemplo.
De acordo com a Receita Federal, bens sujeitos ao pagamento do imposto de importação e que não se enquadrem como de uso pessoal serão isentos até o limite da cota de US$ 1.000 se a viagem for aérea ou marítima. Os viajantes também podem trazer outros US$ 1.000 em compras em lojas isentas de tributos. No entanto, em viagens por via terrestre, fluvial ou lacustre, a isenção cai pela metade — ou seja, US$ 500.
Independentemente do meio de transporte, o Fisco impõe limites quantitativos que variam de acordo com o item importado. No caso de bebidas alcoólicas, por exemplo, são permitidos somente 12 litros no total. O que exceder esse volume ou o valor de isenção referente ao respectivo meio de transporte será tributado.
Quando a gente fala Margem Equatorial e a gente pensa que é fora do Amazonas, você sabe a que distância quilométrica está a possibilidade de ter petróleo? A 575 quilômetros da margem. Ou seja, não é uma coisa que está ali na Amazônia.
Para defender a exploração de petróleo na Margem Equatorial, faixa litorânea que vai do Amapá ao Rio Grande do Norte, o presidente alega que o risco ambiental de um possível empreendimento seria reduzido, já que o recurso estaria localizado em uma região distante da foz do rio Amazonas. O argumento é distorcido, pois ignora que a perfuração de um poço de petróleo, mesmo a centenas de quilômetros, pode afetar o ambiente marítimo, os biomas no entorno e as comunidades locais.
A Margem Equatorial tem sido alvo de disputas internas no governo desde o ano passado. Localizado a 179 km da costa do Amapá e a 500 km da foz do rio Amazonas, o bloco de exploração FZA-M-59 está situado em uma bacia sedimentar pouco estudada e com alta sensibilidade ambiental. Em parecer de abril do ano passado que negou o pedido da Petrobras para estudar a região, o Ibama alegou que a movimentação de embarcações na região pode afetar o ecossistema de corais e prejudicar os manguezais.
Além disso, especialistas consultados pelo Aos Fatos apontam que o ruído causado pela exploração pode prejudicar o equilíbrio dos ecossistemas ao afugentar a fauna da região e afetar a atividade econômica da população ribeirinha que vive da pesca. Espécies também podem ser mortas durante o processo por soterramento ou contaminação pelos resíduos da perfuração.
A eventual aprovação para exploração petrolífera também pode afetar negativamente a rotina e a cultura de comunidades indígenas da região, que terão que lidar com o aumento do fluxo migratório gerado pela atividade econômica, o sobrevoo constante de aeronaves e a movimentação causada pela perfuração.
Em resposta à negativa do Ibama, a Petrobras afirmou em nota no ano passado que a perfuração traz baixo risco ambiental para a região e que o plano proposto ao órgão previa “ações de resposta costeira à fauna, incluindo monitoramento e atendimento veterinário”. Especialistas do setor consultados pela reportagem acrescentaram ainda que a Petrobras nunca causou acidentes durante a perfuração de poços.
Veja, nós temos quase que R$ 1 trilhão para a Previdência Social. É muito? É muito. Agora, se tem muita gente em idade de se aposentar, vai sempre aumentar. Agora o que é muito é você ter quase 600 bilhões de isenção, de desoneração.
Os gastos previdenciários federais em 2023 somaram cerca de R$ 900 bilhões, e as isenções fiscais somaram aproximadamente R$ 646 bilhões. Os valores são próximos dos citados por Lula.
Em 2023, o gasto previdenciário foi de R$ 896,60 bilhões, de um total de R$ 959,64 bilhões previstos no Orçamento. Para 2024, a coordenação de Orçamento e Finanças do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) estimou que haverá um gasto de R$ 917,8 bilhões, valor que contempla benefícios, compensações e sentenças judiciais do setor. O número é próximo do estimado pelo IFI (Instituição Fiscal Independente), órgão vinculado ao Senado, que prevê um gasto de R$ 929,5 bilhões neste ano.
A cifra referente às isenções fiscais também é próxima de R$ 600 bilhões, como afirmado por Lula. Segundo trechos de um relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) divulgados pelo jornal O Estado de S. Paulo, o governo federal deixou de arrecadar R$ 646,6 bilhões — montante também citado recentemente pela ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet — em razão de isenções fiscais em 2023. Em relação à desoneração da folha de pagamento, a renúncia fiscal foi de R$ 9,3 bilhões, segundo dados da Receita Federal.
Triste é que um deputado apresenta um projeto de lei em que o estuprador pode pegar uma pena menor do que a estuprada.
Lula comentava sobre o PL 1.904/2024, de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). De fato, o texto propõe que pessoas que realizarem aborto após 22 semanas de gestação — tanto gestantes como profissionais responsáveis pelo procedimento — possam ser penalizados da mesma maneira que alguém que cometa homicídio simples: reclusão de 6 a 20 anos.
Atualmente, o Código Penal pune com detenção de 1 a 3 anos a mulher que realiza um aborto ou consente que outra pessoa o faça. O mesmo texto prevê que a pena máxima de estupro é de reclusão de 6 a 10 anos; a de estupro de vulnerável (menor do que 14 anos) é de 8 a 15 anos.
Logo, caso o texto seja aprovado do jeito que está, é fato que a pena para uma mulher estuprada que aborte será maior do que a do autor do estupro.
Após as críticas ao projeto, Sóstenes Cavalcante assinou a coautoria do PL 2.388/2024, que propõe o aumento da pena para os crimes de estupro e estupro de vulnerável. O texto, no entanto, não foi apreciado pela Câmara dos Deputados.