Esta é a primeira reportagem de uma série investigativa coordenada pelo CLIP (Centro Latino-americano de Investigação Jornalística) com Aos Fatos e mais seis meios de comunicação latino-americanos sobre quem está por trás da desinformação política na região.
Um país em que não há mais cachorros: todos foram comidos pelos seus moradores famintos. O aborto está liberado, é possível casar com adolescentes, as drogas são liberadas e ninguém mais está preso. O presidente botou fogo em metrôs e só foi eleito porque mais da metade não participou do pleito. O Brasil pagou um metrô na capital desse país, mas o empréstimo foi quitado em charutos. Só existe uma salvação contra esse cenário de terror: o governo de Jair Bolsonaro, presidente brasileiro e candidato à reeleição.
Nenhuma das informações acima citadas é verdadeira, mas todas foram ditas pelo presidente brasileiro em seus quase quatro anos de mandato. Aos Fatos checou ao menos 382 alegações desinformativas citadas pelo mandatário que envolvem países da América Latina, desde as mais prosaicas, como a suposta inexistência de pets na Venezuela, repetida por 27 vezes, até as mais graves, como a acusação de vandalismo a Gabriel Boric, presidente do Chile.
Na Argentina, a eleição como gatilho
Os países mais citados em argumentos desinformativos são a Venezuela, com 85, a Argentina, com 83, e Cuba, com 53 menções. As três nações são lideradas hoje por rivais ideológicos de Bolsonaro, o que é o principal gatilho para a disparada de mentiras por parte do presidente. Venezuela e Cuba, comandadas por Nicolás Maduro e Miguel Díaz-Canel, são alvos persistentes, mas a Argentina passou a ser mais atacada quando mudou de presidente, em 2019: Alberto Fernández, peronista de centro-esquerda, assumiu o poder em dezembro daquele ano e Bolsonaro não compareceu à sua posse.
A escalada de desinformação é visível após a ascensão de Fernández. Quando Mauricio Macri era presidente, foram apenas sete frases de Bolsonaro com mentiras ou imprecisões. Depois disso, foram 76.
Os temas se diversificam: em junho de 2021, Bolsonaro disse que a Argentina era o país “que mais fechou tudo no mundo” e “um dos países em que mais morre por milhão de habitantes”, para criticar as restrições de circulação para impedir a disseminação da Covid-19. Ambas as alegações eram falsas: a Argentina ocupava o 8º lugar em um ranking de restrições de atividades elaborado pela Universidade de Oxford e o 23º na lista do Our World In Data de mortalidade por milhão, atrás do Brasil, que era o 10º.
Com a proximidade de Fernández com o adversário de Bolsonaro nas eleições, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o presidente intensificou em 2022 os ataques desinformativos contra o país vizinho. Em agosto, ele mentiu sobre a pobreza argentina, quando disse que 40% da população estava abaixo da linha da miséria — eram 8,2% nos últimos dados disponíveis na época, o que representava uma queda ante os 10,2% do último trimestre do governo Macri. Bolsonaro também lamentou a “oficialização da linguagem neutra” no país, o que jamais aconteceu.
No Chile, vacinas e convocação de embaixador
O padrão da escalada de desinformação após um resultado eleitoral negativo não se repetiu no Chile. Durante o governo de Sebastián Piñera, Bolsonaro atacou pelo menos dez vezes a vacina CoronaVac, produzida pelo laboratório chinês Sinovac, usando dados falsos do país andino como argumento.
Em julho de 2021, por exemplo, Bolsonaro disse que a vacina “não deu certo” no país, embora tenha acontecido uma queda de 20,84% nas mortes de pessoas acima de 90 anos nos três meses anteriores à frase do presidente, e de 4,35% entre os idosos entre 80 e 89 anos. Na época, o Chile estava mais avançado do que o Brasil na vacinação com o imunizante chinês.
Entretanto, Piñera não era adversário ideológico de Bolsonaro, como Gabriel Boric, eleito em dezembro de 2021. Nessa época, o presidente brasileiro colocou em dúvida a participação popular no pleito, com a alegação falsa de que mais da metade dos eleitores não compareceu — mesmo com o voto facultativo, a participação foi de 55,4% do total. Bolsonaro evitou críticas mais duras até agosto de 2022, quando, no em um debate eleitoral, disse: “Lula apoiou o presidente do Chile também. O mesmo que praticava atos de tocar fogo em metrôs lá no Chile. Para onde está indo nosso Chile?”
Boric, entretanto, jamais foi acusado de incendiar metrôs no país que hoje governa. Bolsonaro se referia aos danos sofridos pelo transporte urbano de Santiago durante os protestos de 2019, que levaram à prisão de Daniel Bustos Trabols, de 23 anos. Na época, o Ministério Público chileno considerou que não havia um vínculo político por trás do delito. Revoltada com a frase de Bolsonaro, a ministra das Relações Exteriores do Chile, Antonia Urrejola, convocou o embaixador do Brasil em Santiago para esclarecimentos.
“Consideramos essas acusações (de Bolsonaro) gravíssimas. Obviamente são absolutamente falsas e lamentamos que em um contexto eleitoral as relações bilaterais sejam aproveitadas e polarizadas por meio da desinformação e das notícias falsas”, afirmou Urrejola.
Segundo Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais do Berea College, dos Estados Unidos, o discurso de Bolsonaro difere muito do tradicionalmente adotado pela diplomacia brasileira. “O uso de forma derrogatória de referências a países latino-americanos não é comum na diplomacia brasileira. É ver a política como uma relação ‘amigo-inimigo’. Ele não olha para relações geopolíticas ou como fortalecer as relações do Brasil de estado para estado. Ele é um ideólogo e se vê como um líder de um movimento”, afirma.
Na Colômbia, até o discurso na ONU vira alvo
Assim como no caso da Argentina, a Colômbia tem a eleição de um adversário ideológico como principal gatilho para a desinformação. Quando Bolsonaro assumiu o poder, o presidente colombiano era Iván Duque, com quem o mandatário brasileiro teve uma relação amistosa, com encontros bilaterais e trocas amenas de palavras. Durante o mandato de Duque, Bolsonaro desinformou sobre a Colômbia apenas quatro vezes, todas relacionadas a uma inexistente relação do antigo grupo guerrilheiro Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) com o Foro de São Paulo, grupo que reúne partidos e movimentos de esquerda da América Latina.
Esse panorama muda quando Gustavo Petro assume a presidência colombiana. Assim como nos casos de Fernández e Boric, o presidente brasileiro não foi à sua posse, e passou a adotá-lo como alvo em seus discursos, de uma forma mais dura do que a aplicada com outros mandatários.
“Quando eu saí da tribuna lá da ONU, que eu falei do Brasil, né? Subiu lá o Petro, presidente recém-eleito da Colômbia, apoiado por Lula, defendeu liberação da cocaína”, disse Bolsonaro em 29 de setembro de 2022. Ele se referia ao discurso na Assembleia Geral da ONU, e é mentira que Petro tenha defendido a liberação generalizada da cocaína: o presidente colombiano criticou a “guerra às drogas”, dizendo que havia fracassado, e propôs uma nova abordagem.
“Diminuir o consumo de drogas não necessita de guerras, e sim de construirmos uma melhor sociedade, mais solidária, mais afetuosa, onde a intensidade da vida nos salve dos vícios e as novas escravidões. Querem menos drogas? Pensem em menos ganância e mais amor. Pensem em um exercício racional do poder”, disse.
Não foi a única vez em que Bolsonaro distorceu os posicionamentos de Petro. O mandatário brasileiro também disse que o colombiano pretende “soltar os encarcerados”, quando ele se referia aos detidos nos protestos políticos de 2021; também afirmou que ele pretendia acabar com o Ministério Público, quando na verdade ele criticou a atuação da Procuradoria-Geral de Justiça do país, afirmando que faz perseguições políticas e não encara casos de corrupção. Aos Fatos apurou 14 afirmações falsas de Bolsonaro sobre a Colômbia, dez após a posse de Petro.
Cuba e Venezuela, os principais alvos
Os alvos preferidos de Jair Bolsonaro ao longo do seu governo foram as duas maiores referências de regime socialista na América Latina: os governos de Cuba e da Venezuela. As mentiras sobre esses países foram uma constante ao longo do mandato presidencial do chefe de estado brasileiro.
A respeito de Cuba, as alegações desinformativas mais frequentes envolvem o programa Mais Médicos, criado pelo PT para atrair profissionais de saúde para áreas carentes do Brasil, cujo convênio com o país caribenho foi suspenso imediatamente após sua vitória em 2018.
Bolsonaro repetiu nove vezes que quase todo o salário do profissional cubano que trabalhava no Brasil era confiscado pelo governo local, o que jamais foi comprovado pelos dados disponíveis. Também afirmou que não eram médicos, e sim “agentes” da nação comunista, o que é uma teoria conspiratória — eram, de fato, profissionais da saúde.
Os convênios do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) com os países vizinhos também foram alvo de ataques com desinformação. O presidente brasileiro repetiu 13 vezes que o Brasil recebeu charutos como garantia nas negociações do empréstimo para o porto de Mariel, o que não é verdade: segundo a imprensa brasileira noticiou, o contrato previa, como garantia, "fluxos internos de recebíveis gerados pela indústria cubana de tabaco". Ou seja, caso Cuba não pagasse o empréstimo do BNDES, o banco receberia a receita gerada pela indústria de charutos cubanos, e não os produtos.
O BNDES também serviu para mentir pelo menos 13 vezes sobre a construção de um metrô em Caracas, na Venezuela, que, na fala de Bolsonaro, teria sido construído com dinheiro do banco, enquanto a cidade brasileira de Belo Horizonte não tinha o mesmo meio de transporte. Na verdade, a obra foi financiada pela Odebrecht no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 2001, e a capital do estado de Minas Gerais tem metrô desde 1986.
Em outras ocasiões, Bolsonaro também enganou ao atribuir a Lula a frase “na Venezuela pode faltar tudo, menos democracia”, que é uma distorção de uma fala do ex-presidente em 2004, além de exagerar a quantidade de venezuelanos que chegam a pé na fronteira de Pacaraima (RR) — são 239 por dia, não cerca de 600.
A alegação mais repetida, porém, é “Na Venezuela não tem mais cachorrinho, nem gatinho. Comeram tudo”. É uma distorção de uma fala de Ramón Muchacho, prefeito de Chacao e opositor do regime de Nicolás Maduro. Ele alertava que as pessoas estavam “caçando cães e gatos para comer”, mas não disse que os animais de estimação haviam sido extirpados no país. Isso não impediu Bolsonaro de repetir a mentira pelo menos 27 vezes, em lives, discursos e entrevistas.
Para o professor Poggio, do Berea College, muitos dos danos provocados por Bolsonaro nas políticas diplomáticas do Brasil ainda não foram totalmente explorados porque existe um “compasso de espera” em relação às eleições de 2022. “Foi um processo de destruição da política externa brasileira que foi relativamente bem feito. Não sobrou nenhum aliado. Bolsonaro vai para a Europa e visita a Hungria, porque não sobrou ninguém. Um discurso em que o presidente da Argentina eleito, que tem relações históricas, e sequer liga para parabenizar, é uma política bastante desagregadora", disse.