Bolsonaristas resgataram antigas desinformações sobre a Lei Rouanet para criticar e desdenhar, nas redes, do tamanho das manifestações contra a anistia e a PEC da blindagem neste domingo (21).
As mentiras, disseminadas durante e após os atos, diziam que os artistas que convocaram e que se apresentaram nos protestos são beneficiários da Lei Rouanet e receberam cachê pelos shows de ontem.
Figuras influentes do bolsonarismo, como o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) (veja abaixo) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), amealharam mais de 3 milhões de interações entre domingo e segunda (22) ao dizer que o ato “nem com Rouanet vingou” e chamar os artistas de “mamadores de Rouanet”.
Na esteira das lideranças da oposição, uma série de posts com retórica semelhante passou a circular no Facebook e no Instagram, acumulando milhões de visualizações.

As insinuações de que a presença dos artistas teria sido custeada por meio da Lei Rouanet não se sustentam nos fatos. O programa não injeta verbas públicas diretamente em projetos: apenas permite a captação de recursos por meio de renúncia fiscal de empresas.
Ainda assim, Aos Fatos buscou e não identificou na Salic — plataforma oficial do programa — nenhum projeto que envolva o pagamento de cachê aos artistas citados nas críticas e desinformações disseminadas nas redes.
Também não há projetos ativos hoje na Rouanet em nome de Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil, que se apresentaram no Rio de Janeiro, ou de Daniela Mercury e Wagner Moura, que foram ao ato em Salvador. O mesmo é válido para as produtoras e as organizadoras do evento. Esses cinco artistas foram citados na maioria das peças desinformativas detectadas pelo Aos Fatos.

Alguns deles, inclusive, já disseram não usar programas de incentivo, como Chico e Wagner Moura. Flora Gil, mulher de Gilberto Gil, também disse que deixou de recorrer ao mecanismo por conta de “fofocas”.
É fato, no entanto, que alguns dos artistas já receberam recursos no passado, mesmo que indiretamente: uma produtora obteve R$ 270 mil para gravar um vinil de Daniela Mercury e a produtora de Flora Gil captou recursos para eventos e acervos de seu marido.
Além de sugerir que os artistas teriam recebido dinheiro da Lei Rouanet para participar dos atos, algumas peças citaram o recorde autorizado pelo governo Lula (PT) para captação nos últimos dois anos.

De fato, nos dois primeiros anos de mandato, o governo autorizou projetos que, juntos, poderiam captar cerca de R$ 34 bilhões. O montante representa mais do que o dobro do que a gestão Bolsonaro aprovou em quatro anos (cerca de R$ 16 bilhões).
Os posts omitem, no entanto, que esse valor se refere à soma aprovada para captação, e não à efetivamente arrecadada. Dos R$ 34 bilhões aprovados, apenas R$ 5,3 bilhões foram, de fato, arrecadados (veja gráfico abaixo).
Histórico
Assim como fez Bolsonaro no passado, as publicações distorcem o modelo de funcionamento da Lei Rouanet, que permite que pessoas físicas e jurídicas patrocinem ações culturais em troca de desconto no imposto de renda:
- Primeiro, a proposta é inscrita pelos produtores responsáveis;
- Técnicos do Ministério da Cultura analisam se a iniciativa respeita os requisitos exigidos em lei e, em seguida, um parecerista da área cultural faz sua análise. A partir desse parecer, a comissão decide por homologar ou não a proposta;
- A decisão final cabe ao ministro da Cultura, que geralmente acompanha o que foi definido pela comissão;
- Só após a assinatura do ministro — ou de um subordinado indicado por ele — e a publicação no Diário Oficial da União é que o projeto cultural está autorizado a captar recursos junto aos patrocinadores;
- Com 20% do valor total captado, já é permitido o início da execução.
Anistiados contra a anistia
Bolsonaristas também têm criticado nas redes Caetano, Chico e Gil por uma contradição infundada: eles estariam lutando contra a anistia dos condenados pelo 8 de Janeiro mesmo tendo sido anistiados após a ditadura militar.

Essa argumentação não procede, pois:
- Em 1968, semanas após a decretação do AI-5, Caetano e Gil foram presos por “subversão e incitamento à desordem”. Ambos foram liberados meses depois e, em 1969, exilaram-se na Inglaterra;
- Os dois voltaram definitivamente ao Brasil no início de 1972;
- Após a prisão de Caetano e Gil, Chico Buarque também se autoexilou na Itália no início de 1969;
- Chico regressou ao Brasil em março de 1970, após 14 meses.
Nenhum dos três, portanto, cumpria pena ou teve acusações criminais perdoadas quando a anistia de 1979 foi aprovada. Os artistas também não constam na lista de anistiados políticos.
Desinformação da esquerda
Assim como já ocorreu do lado bolsonarista, perfis de esquerda recorreram à desinformação para inflar os atos contra a anistia e a PEC da Blindagem.
Aos Fatos identificou vídeos gerados por inteligência artificial e gravações de outros momentos e de outras localidades sendo usadas para fazer crer que ainda mais gente compareceu às manifestações.
Há publicações ainda que afirmam que o ato na avenida Paulista reuniu mais de 100 mil pessoas. Porém, segundo o Monitor do Debate Político no Meio Digital, coordenado pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) em parceria com a USP (Universidade de São Paulo), a média de participação foi de 42,4 mil pessoas em São Paulo e de 41,8 mil pessoas no Rio de Janeiro.
Outro lado
Aos Fatos entrou em contato com as assessorias de Nikolas Ferreira e Flávio Bolsonaro para abrir espaço para comentários, mas nenhum deles respondeu até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado em caso de retorno.
O caminho da apuração
Aos Fatos fez buscas por publicações recentes com as palavras “rouanet” e com os nomes dos artistas destacadas por bolsonaristas nas redes — Caetano, Chico, Gil, Daniela Mercury e Wagner Moura. Procuramos por projetos com captação ativa na Salic com a participação dos cinco artistas, mas não encontramos nenhum resultado.
Também pesquisamos por declarações públicas e desmentidos anteriores sobre o uso de recursos da Lei Rouanet por parte dos cinco e buscamos dados de projetos e captação de recursos na base de dados do Ministério da Cultura.




