Apoiadores de Donald Trump têm promovido um retrato do Brasil como país autoritário para alimentar teorias da conspiração de que uma eventual vitória de Kamala Harris nas eleições colocaria em risco a liberdade de expressão nos Estados Unidos.
A campanha, que tem como ponto central a suspensão judicial do X no Brasil, tem disseminado mentiras para atribuir ao Partido Democrata supostos planos de fomentar a censura.
Só nos últimos dois meses, posts em língua inglesa que mencionam uma suposta censura no Brasil somaram mais de 137 milhões de visualizações e 1,3 milhão de curtidas no X, conforme mostra levantamento exclusivo feito pelo Aos Fatos.
Cerca de 15% dessa audiência foi direcionada a publicações que relacionam o caso brasileiro às eleições americanas.
Nas últimas semanas, a retórica foi amplificada com a participação de brasileiros e chegou a entrar na campanha de Donald Trump. Em 20 de outubro, durante um ato em uma franquia do McDonald's, uma imigrante brasileira pediu ao candidato que não deixasse “os Estados Unidos se tornarem o Brasil”.
Dias antes, o lutador de MMA Markus Peres pediu votos para Trump em seu discurso de vitória após uma luta. “No momento, a Venezuela e o meu país, o Brasil, estão em uma situação péssima, porque os governantes são de esquerda. Então, se vocês não querem que os Estados Unidos se tornem isso, permaneçam na direita. É Trump!”, bradou, sob aplausos da plateia.
Os dois vídeos viralizaram entre republicanos e fomentaram comentários que alertavam para um suposto risco de censura nos Estados Unidos no caso da vitória de Kamala.
Sob censura
Apesar de circular desde abril, a trama conspiratória que distorce fatos políticos do Brasil para tentar influenciar os rumos da eleição para a Casa Branca ganhou força ainda no fim de agosto, quando o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes determinou o bloqueio do X no país.
A suspensão ocorreu após Elon Musk se negar a nomear um representante legal para o país. O bilionário havia anunciado o fechamento do escritório no Brasil em 17 de agosto, acusando Moraes de “censura” por pedir a suspensão de perfis de investigados por propagação de desinformação e ataques às instituições.
Pouco antes da suspensão, o CEO da Meta, Mark Zuckerberg, enviou uma carta ao Comitê de Assuntos Judiciários da Câmara dos Estados Unidos — controlado por republicanos — na qual acusava o governo Biden de ter pressionado a Meta para “censurar” conteúdos relacionados à pandemia de Covid-19.
As acusações feitas por Zuckerberg e as notícias sobre a suspensão do X se tornaram combustível para teorias da conspiração que atribuíam aos democratas um plano de bloquear redes também nos Estados Unidos. Essas peças alegavam que Kamala pretendia repetir a ordem de Moraes, caso eleita.
A mentira, que chegou ao Brasil, tirava de contexto um vídeo de 2019, no qual a democrata defendia a suspensão dos perfis de Donald Trump. A edição suprimiu o contexto para dar a entender que a candidata falava da plataforma de Musk.
Compartilhada por nomes de peso da cena política americana, como Robert Kennedy Jr., a desinformação também apareceu no podcast de Joe Rogan — um dos influenciadores mais populares do mundo, que entrevistou Trump recentemente em um episódio de três horas.
Apesar dos desmentidos publicados por agências de checagem, a peça de desinformação voltou a circular depois de ser republicada por Musk.
Garoto-propaganda
Nos Estados Unidos, o principal rosto das denúncias sobre a suposta censura no Brasil é o ativista conservador Michael Shellenberger, que ganhou notoriedade minimizando a gravidade das mudanças climáticas.
Em abril, Shellenberger havia sido o pivô do caso que ficou conhecido como Twitter Files Brazil — o vazamento de documentos, tirados de contexto e sem autenticidade comprovada, para atribuir a Alexandre de Moraes supostas tentativas de censura do X.
Em 31 de agosto, Shellenberger defendeu em artigo que o Brasil havia se tornado “um laboratório para a censura que os líderes dos EUA, da Europa e de outros países ocidentais desejam”. Ele acusou o governo americano de omissão com o caso brasileiro e alegou que os democratas “não só apoiam a censura, mas também a financiam diretamente”.
Ao comentar o bloqueio do X e as decisões de Moraes para suspender perfis, o ativista americano afirmou que o Brasil vivia “um tipo de repressão que vemos em fases embrionárias nos Estados Unidos e na Europa”.
Lobby
A retórica também foi disseminada por parlamentares e organizações de lobby para pautas conservadoras nos EUA.
Em 2 de setembro, o senador republicano Ted Cruz divulgou o podcast que apresenta acusando Harris de apoiar a censura do X. “Brasil proíbe X, prenunciando a censura que os democratas desejam na América”, diz a chamada do episódio.
O senador foi um dos 12 parlamentares americanos que assinaram uma carta ao governo do país pedindo investigação sobre o banimento do X no Brasil. O documento também pedia um posicionamento formal de Washington sobre o caso — embora a porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, já tivesse defendido que “todas as pessoas deveriam ter acesso às redes sociais”, em resposta à imprensa.
A organização conservadora America First também iniciou investigação sobre suposta participação do governo na “censura de mídia social pelo governo de esquerda do Brasil”. Já a fundação conservadora ADF (Aliança de Defesa da Liberdade, em português) coletou assinaturas contra o banimento da rede no Brasil.
Mesmo depois da volta do X ao Brasil, acusações sobre uma suposta perseguição à liberdade de expressão no país continuaram circulando nos Estados Unidos:
- Em 9 de outubro, a America First entrou com processo contra o Departamento de Estado americano por “se recusarem a fornecer registros relacionados ao envolvimento do governo dos Estados Unidos em esforços globais recentes para suprimir a liberdade de expressão";
- No dia 16 de outubro, Shellenberger publicou mais um texto, agora relacionando o governo de Joe Biden a uma investigação contra o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) no Brasil;
- No mesmo dia, o apresentador de extrema-direita americano Alex Jones — que foi condenado pela Justiça dos Estados Unidos a pagar centenas de milhões de dólares em indenização a pais de crianças assassinadas a tiro em escolas, vítimas de teorias conspiratórias criadas por ele — relacionou as restrições sofridas por suas contas nas redes com o banimento de perfis por determinação judicial no Brasil.
O caminho da apuração
Aos Fatos fez uma busca avançada no X por posts em inglês contendo os termos “Brazil”, “censorship” (censura) e “free speech” (liberdade de expressão) publicados nos últimos dois meses. Também buscamos conteúdos relacionados no Facebook, no Instagram e no YouTube.
Então, analisamos as publicações e contabilizamos seu alcance, construindo uma linha do tempo das menções à suposta censura no Brasil no contexto das eleições americanas.