Gastos da Arábia Saudita para limpar reputação com competições esportivas geram engajamento

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Você nem precisa gostar de futebol para ter ouvido por aí que o meia Arrascaeta, do Flamengo, foi sondado pelo “mundo árabe” — ou que o zagueiro Gustavo Gómez, do Palmeiras, pode estar “de malas prontas” para lá.

A Plataforma de hoje é sobre a influência da Arábia Saudita nas redes.

EM 5 PONTOS:

  • Usar competições esportivas para limpar a reputação não é novidade — mas a ditadura saudita adotou escala jamais vista;
  • A estratégia faz parte de um plano maior, que vai além dos esportes, para modernizar a economia e atrair estrangeiros;
  • O fundo soberano do país tem participações em empresas como ByteDance (TikTok), Rappi e Uber, além de startups brasileiras;
  • Atletas, celebridades e influenciadores somam milhões de visualizações ao divulgarem o turismo local nas principais redes;
  • No Brasil, as joias de Bolsonaro foram o assunto relacionado à Arábia Saudita mais buscado no Google desde o início da série.

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🐪 A Arábia e os algoritmos

Mesmo que você não seja fã de mesas-redondas, pode ter ficado sabendo que o português Luís Castro — técnico do Botafogo até o mês passado — recebeu uma ligação do Cristiano Ronaldo e resolveu trocar o líder do Brasileirão pelo Al-Nassr, onde agora treina o compatriota.

Para quem torce, ignorar notícias do tipo tem beirado o impossível. A atual janela de transferências, período em que clubes podem contratar jogadores, promete transformar o Sauditão em um dos campeonatos nacionais com maior alcance global.

  • A busca de times da Arábia Saudita por jogadores que atuam no Brasil ocorria em menor escala. A diferença é que agora os quatro clubes mais populares da liga local passaram a ter participação do fundo soberano do país, o PIF (Fundo de Investimento Público, na sigla em inglês);
  • Desde 2016, o PIF desembolsou bilhões de dólares a fim de atrair eventos esportivos à Arábia Saudita, que é uma monarquia ditatorial, como parte de um plano para modernizar o país até 2030;
  • Além do futebol, o reino possui contrato com a Fórmula 1, chacoalhou o universo do golfe, negocia com a NBA — liga de basquete dos Estados Unidos — e promoveu competições que vão do xadrez ao turfe.

Em dezembro de 2018, dois meses após o jornalista Jamal Khashoggi ter sido assassinado dentro do consulado saudita em Istambul (Turquia), aconteceu a primeira corrida de carros da história da Arábia Saudita. Junto com a etapa da Formula E na capital Riad, houve ainda shows de Black Eyed Peas, David Guetta, Enrique Iglesias e One Republic.

Tanto o assassinato do colunista do Washington Post como o evento de entretenimento não teriam ocorrido sem a anuência do príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, de 37 anos. Ele é o governante de fato desde 2017.

  • Com o controle das maiores reservas de petróleo da Terra e de uma população jovem (62% das pessoas têm 30 anos ou menos), bin Salman despende centenas de bilhões não só para lustrar a reputação do país, mas também para promover uma transição econômica;
  • O Vision 2030 é “um plano ambicioso, porém viável, que expressa nossas metas e expectativas de longo prazo e reflete os pontos fortes e as capacidades de nosso país”, segundo mensagem assinada pelo príncipe herdeiro e publicada pelo governo;
  • Por exemplo: a escolha da Formula E, de carros elétricos, se conecta ao incentivo à transição de matriz energética — a meta é que metade da energia do país seja de fontes renováveis até 2030.

Empresários e investidores estrangeiros associados ao ditador acreditam que, caso os planos dele se concretizem no futuro, o assassinato de Khashoggi será encarado em retrospectiva como um erro menor na trajetória de um jovem líder. É gente como Carla DiBello, que levou ao príncipe herdeiro a ideia de comprar o Newcastle, da primeira divisão do futebol inglês, e ganhou seguidores como ex-produtora do reality show “Keeping Up With the Kardashians” — além de ser amiga pessoal de Kim Kardashian.

As informações do parágrafo acima estão no excelente livro “Blood and oil: Mohammed bin Salman’s ruthless quest for global power” (“Sangue e petróleo: a busca implacável de Mohammed bin Salman por poder global”, sem edição brasileira), dos jornalistas Bradley Hope e Justin Scheck.

Como se vê, o dinheiro do reino jorra em várias direções. Um documentário recente conta como uma pintura que retrata Jesus Cristo ficou esquecida por séculos e acabou em um sebo nos Estados Unidos, onde foi comprada por pouco mais de US$ 1.000. Após passar por restauração, o quadro — apesar da origem pra lá de suspeita — foi leiloado pela Christie’s como um original Leonardo Da Vinci e chegou a incríveis US$ 400 milhões. O comprador você já sabe quem é.


Fado a dois. Castro e Ronaldo sorriem um para o outro; ao centro, o croata Brozovic, contratado após ser vice europeu com a Inter de Milão em 2022 (Reprodução/Instagram)

O fundo soberano também alocou US$ 45 bilhões no Vision Fund, administrado pelo banco de investimento japonês SoftBank, com participações em empresas como ByteDance, dona do TikTok; DiDi, controladora da 99; Slack, Rappi e Uber. Uma das maiores apostas, no WeWork, gerou prejuízos e freou planos para expandir os investimentos, em um segundo fundo do SoftBank.

  • Apesar de ter queridinhas do Vale do Silício, o portfólio é composto na maioria por companhias que não necessariamente têm o consumidor final como cliente;
  • A fabricante de chips Nvidia, que recebeu investimento do Vision Fund, viu seu valor de mercado triplicar apenas neste ano graças aos avanços de inteligência artificial, já que a empresa produz componentes utilizados em supercomputadores;
  • Outra companhia de hardware, a ARM, tem seus processadores instalados em boa parte dos smartphones produzidos atualmente, de marcas como Apple e Samsung, e avança no mercado de desktop;
  • Há três startups de origem brasileira: Creditas, Gympass e Loggi.

O posicionamento como investidor relevante no mundo da inovação se liga à estratégia geral de buscar limpar a reputação da Arábia Saudita e atrair estrangeiros. Conteúdos sobre o país publicados em plataformas digitais por influenciadores de países ocidentais atingem centenas de milhões de usuários.

“O reino já havia passado por mudanças profundas no cotidiano. Partes de Riad e outras grandes cidades se pareciam cada vez mais com Dubai — homens misturados a mulheres com as cabeças descobertas, em restaurantes e shoppings. Turistas começaram a chegar, influenciados por celebridades de Instagram pagas pelo governo saudita para visitarem e espalharem a palavra”, escrevem Hope e Scheck no livro.

Lionel Messi não fez como Cristiano Ronaldo: em vez de jogar na Arábia Saudita, trocou Paris por Miami, um centro menos relevante para o futebol internacional. Mesmo assim, o argentino recebeu dinheiro do príncipe bin Salman para promover o turismo no país. Em maio, postou uma publi paga pelo governo e teve 7,3 milhões de curtidas.

“Alguns anos atrás seria impossível estar assim de camiseta, mostrando os braços (sendo mulher) na Arábia Saudita”, escreveu a influenciadora Nataly Castro (@viajesemlimites), com 75 mil seguidores no Instagram, em uma publicação do mês passado na qual usa a hashtag oficial para promover o turismo local. “Uma experiência rápida, mas única.”

Na busca do Google, a primeira página de resultados e a aba de notícias trazem principalmente textos sobre futebol, como os citados no início desta newsletter. O usuário que quiser se informar sobre violações a direitos humanos terá que procurar um pouquinho mais.


‘Parceria paga.’ Messi recebeu para promover turismo na Arábia Saudita (Reprodução/Instagram)

Apesar dos bilhões gastos para melhorar a imagem do país, o príncipe não contava com a astúcia de Jair Bolsonaro e seus aspones. Foi esse o elenco que protagonizou a história relacionada à Arábia Saudita que gerou mais buscas por brasileiros desde 2004, início da série do Google Trends.

  • As intensas movimentações do mercado da bola não foram suficientes para superar as dúvidas dos brasileiros sobre as joias retidas pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos;
  • Os objetos foram avaliadas pela Polícia Federal em cerca de R$ 5 milhões — o equivalente a uma gota em um oceano de petróleo;
  • Telegrama do Itamaraty revelado pelo G1 mostrou que a comitiva brasileira abordou temas ligados à Petrobras no encontro;
  • Uma das hipóteses sob apuração é se havia, por parte dos sauditas, expectativa de contrapartida em troca das joias.

O ex-chefe de Estado brasileiro não é o único que recebeu agrados de alto valor monetário da monarquia ditatorial. Dois resorts que levam o sobrenome de Donald Trump, que tentará voltar à Casa Branca na eleição do ano que vem, abrigaram torneios de golfe pagos pela Arábia Saudita no ano passado.

No mês passado, em visita à França — país onde o príncipe herdeiro possui um palácio que custou US$ 300 milhões —, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva incluiu em sua agenda um “jantar em homenagem ao presidente da República e senhora Janja Lula da Silva”, oferecido por Mohammed bin Salman. Após reações negativas nas redes, acabou cancelando o encontro. É raro, mas nem sempre o herdeiro consegue o que quer.


O príncipe e o plebeu. Bin Salman e Bolsonaro, na Arábia Saudita, em 2019 (José Dias/PR)

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