Cinco anos após início da pandemia, médicos negacionistas lucram com desinformação em novos nichos

Compartilhe

Com a visibilidade que conquistaram quando defendiam tratamentos sem eficácia comprovada ou disseminavam mentiras sobre as vacinas durante a pandemia da Covid-19, desinformadores do campo da saúde agora exploram outras doenças em busca de engajamento e lucro.

Tratamentos para o câncer sem embasamento científico, dicas de medicina “quântica” e protocolos de saúde masculina que exploram o mercado masculinista foram algumas das soluções encontradas para contornar o fim da alta visibilidade gerada pela pandemia.

Links e mensagens nos perfis direcionam os milhares de seguidores para canais de agendamento de consultas médicas ou compra de cursos online. Os valores cobrados variam entre R$ 800 e R$ 2.500.

Mais do que prejudicar pacientes já fragilizados pelas doenças, a disseminação de mentiras fere o Código de Ética Médica do CFM (Conselho Federal de Medicina), que proíbe esses profissionais de “divulgar informação sobre assunto médico de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico”.

A norma também veda a divulgação, fora do meio científico, de “processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente”.

Falsas curas do câncer

Ilustração abstrata com uma cápsula de medicamento em branco e laranja, cercada por ícones de cifrão ($) e explosões gráficas alaranjadas, simbolizando possíveis custos ou impactos financeiros associados a tratamentos médicos ou farmacêuticos.

Doença que deve afetar uma em cada cinco pessoas ao longo da vida, o câncer tornou-se um dos nichos mais explorados por desinformadores após o fim da pandemia.

É o caso do neurocirurgião José Augusto Nasser, que dedicou à doença quase metade dos posts que publicou em março no Instagram. Em duas publicações recentes, por exemplo, o médico afirma, sem respaldo científico, que bactérias presentes nos canais de dentes mortos poderiam induzir à proliferação celular, o que teria conexão com o surgimento de câncer de garganta. Por isso, sugere ele, extrair esses dentes poderia ajudar no tratamento.

Como suposta prova, o texto de Nasser cita o médico alemão já falecido Josef Issels — cujas práticas, amplamente questionadas, não têm reconhecimento da comunidade científica.

A doutora em biociências Laura Marise, do canal Nunca vi 1 cientista, lembra que infecções na boca podem prejudicar a saúde de forma geral, já que as bactérias podem invadir a corrente sanguínea. Não existe, porém, nenhuma relação direta entre essas infecções e o surgimento de câncer.

A cientista também ressalta que o fato de pacientes com câncer terem dentes infectados não significa que as duas coisas estão interligadas— sobretudo no período em que Issels atuou, quando a saúde oral da população era ainda mais precária.

“Seria como dizer que, no Brasil, todas as pessoas com câncer atendidas têm um chinelo Havaianas e que, portanto, o uso do chinelo causaria câncer”, afirma.

Laura Marise também nota que as publicações de Nasser utilizam incorretamente a palavra “cancerígena” para se referir à célula tumoral. “Cancerígeno é algo que causa câncer. O correto é célula cancerosa. E esse não é um erro isolado, ele se repete em todos os posts”.

Ivermectina. Nasser também tem usado seu Instagram para defender o uso off-label de medicamentos sem eficácia comprovada como possível caminho para a cura de diferentes tipos de tumores, entre eles um antiparasitário que ganhou fama durante a pandemia da Covid-19: a ivermectina.

“Não há evidências científicas robustas que indiquem que a ivermectina cura ou trata o câncer. Até o momento, nenhuma grande organização de oncologia, nenhum órgão regulatório como a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a FDA (Food and Drug Administration, agência reguladora americana) e a própria SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica), nenhum desses órgãos recomenda a ivermectina para o tratamento do câncer”, explica Pamela Reinaldo Leite, oncologista do Hcor (Hospital do Coração).

Durante a pandemia, Nasser ganhou fama divulgando informações falsas contra a vacinação. Um de seus vídeos, já desmentido, pregava aos pais que não vacinassem seus filhos, argumentando — sem provas — que os insumos poderiam deixar sequelas nas crianças.

Na época, em um debate no Senado convocado pelo senador Eduardo Girão (Novo-CE), o neurocirurgião também mentiu afirmando que um estudo no Japão teria mostrado que a proteína spike da vacina da Pfizer era tóxica e se acumulava nos ovários.

Saúde masculinista

Ilustração abstrata de elementos gráficos interligados, incluindo hexágonos alaranjados, círculos brancos com o símbolo de cifrão ($) e formas geométricas variadas, representando um conceito financeiro ou econômico.

Citado no relatório final da CPI da Pandemia como um dos influenciadores responsáveis por disseminar desinformação sobre a Covid-19, o médico Alessandro Loiola hoje usa suas redes para comercializar supostos protocolos naturais de “otimização de testosterona”.

Seu perfil no Instagram tem 488 mil seguidores e intercala publicações sobre saúde com conteúdos masculinistas, que abordam relacionamentos e comportamento. Neles, Loiola denuncia supostos “privilégios” das mulheres e defende a existência de uma “poderosa agenda castradora” no mundo atual, cujo objetivo seria afastar os homens de sua “energia masculina”.

O médico questiona os níveis considerados saudáveis de testosterona — entre 350 e 1.000 nanogramas por decilitro (ng/dL) para adultos, segundo a SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia) —, afirmando que os homens deveriam buscar se aproximar do valor máximo dessa escala para evitar problemas como cansaço, ganho de peso e falta de libido.

Com essa retórica, Loiola recomenda tratamento mesmo a seguidores que possuem níveis de testosterona considerados normais pela ciência — caso de um usuário do Instagram que comentou ter obtido 473 como resultado de um exame, taxa que o médico disse ser “baixa”.

Além do tratamento de “otimização” da testosterona, Loiola vende um curso no qual compartilharia seu método com outros profissionais de saúde.

Nos posts sobre os supostos resultados do protocolo, o médico costuma apresentar casos de pacientes que teriam mais do que dobrado seus níveis de testosterona em poucas semanas de forma “natural”, sem a administração de hormônios.

Andrea Fioretti, coordenadora do Departamento de Endocrinologia do Esporte e Exercício da SBEM, explica que um homem que tem um nível de testosterona abaixo de 350 ng/dL pode ganhar mais disposição com a normalização da taxa.

Porém, se ele estiver em uma faixa considerada normal e aumentar ainda mais a quantidade de hormônio, isso não garante uma melhora significativa no seu quadro clínico.

“Um homem que tem um quadro de indisposição ou disfunção sexual não necessariamente tem uma alteração hormonal”. Segundo a endocrinologista, nesse caso, o mais provável é que os sintomas tenham outra causa.

O estilo de vida do homem também tem relação direta com seu perfil hormonal. A obesidade, por exemplo, pode reduzir o nível de testosterona.

“O emagrecimento, o controle da glicose, a prática de exercício físico, o ajuste da qualidade do sono, por exemplo, são maneiras eficazes de aumentar naturalmente os níveis de testosterona”, explica Patricia Corradi, endocrinologista da Rede Mater Dei de Saúde. O impacto, porém, não é imediato, e começa a surgir após cerca de oito semanas de intervenção.

O nível de testosterona varia conforme a idade do homem e pode flutuar também ao longo do dia. Por causa dessa variação, apresentar um exame alterado não significa que o homem tenha falta de testosterona, havendo a necessidade de repetir a medição mais de uma vez antes de se chegar a uma conclusão.

Antes da aposta no segmento masculinista, Loiola se notabilizou na pandemia com publicações desinformativas contra o isolamento social, o lockdown, as vacinas e o uso de máscaras, chegando a ter a quebra de seus sigilos fiscal e bancário aprovada pelos membros da CPI da Pandemia.

Entre as mentiras que disseminou sobre o coronavírus está a de que as vacinas poderiam alterar o código genético humano e causar “epidemias de câncer”. Em outra publicação, o médico alegou falsamente que os exames RT-PCR geravam 97% de falsos positivos e que estudos na Itália e nos EUA indicariam que o total de mortes por Covid-19 era superestimado.

Além da disseminação de desinformação, o médico, que é especializado em proctologia e cirurgia geral, também ganhou notoriedade por ter sido uma das duas testemunhas de defesa indicadas pelo então deputado Daniel Silveira no processo disciplinar que respondeu, em 2021, perante o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados.

‘Medicina quântica’

Ilustração estilizada de um dispositivo cilíndrico, semelhante a uma seringa ou equipamento médico, com detalhes em branco e laranja, acompanhado de ícones de cifrão ($) e círculos concêntricos, sugerindo uma relação entre tecnologia médica e dinheiro.

Especializado em clínica médica e medicina do trabalho, Nelson Pires Modesto viralizou na pandemia graças a um áudio no qual afirmava ter feito um estudo que teria descoberto que a Coronavac não seria segura.

Na gravação, Modesto acusava a vacina chinesa de provocar doenças autoimunes e câncer e de conter substâncias como nagalase, óxido de grafeno e nanopartículas de grafeno. “Nas vacinas, eu detectei citomegalovírus, epstein-barr, HIV, HPV e outros”, dizia também o áudio mentiroso, que foi desmentido pelo Comprova e pelo Uol Confere.

O fim da pandemia não impediu o médico de continuar defendendo conceitos pseudocientíficos nas redes. Em seu Instagram, que tem quase 50 mil seguidores, Modesto defende dietas e estratégias derivadas do campo da “saúde quântica” para supostamente promover a imunidade do indivíduo e ajudar no combate de diversas doenças, incluindo o câncer.

Entre as indicações estão tratamentos sem base científica, como o uso de mandalas, geradores de “energia escalar” e “água energizada”.

O médico também utilizaria para diagnóstico o método de “biorressonância”, mais especificamente o BDORT (Bi-Digital "O" Ring Test). Esse teste de diagnóstico avalia a saúde do paciente pela força muscular dos dedos da mão, é considerado pseudocientífico e seu uso já levou à condenação de um médico pelo tribunal disciplinar da profissão na Nova Zelândia.

Outro lado

Por telefone, Modesto questionou as afirmações da reportagem, defendendo que os procedimentos que utiliza têm embasamento, mas disse que iria se manifestar por meio de suas redes.

Já Nasser afirmou que suas publicações são baseadas na literatura médica e que não faz propaganda “de nenhuma substância que não esteja sustentada dentro do painel de atendimento das doenças que os pacientes apresentam”.

Íntegra da resposta de José Augusto Nasser

Em primeiro lugar, os Estudos de biodistribuição da proteína spike no corpo estão mais do que respaldados pela literatura médica, desde 2022, Todo o arsenal bibliográfico sempre esteve disponivel no meu Substack e também no ICAN documents livre para acesso nos EUA. Todos os documentos da Pfizer estão no Pfizer documents publicados por Naomi Wolf e auxiliada por mais 2500 cientistas ao redor do mundo que analisaram dos documentos liberados pela Justiça Americana ao ICAN que seriam liberados apenas em 75 anos pelo FDA. São documentos da propria Pfizerr não meus.

Os conteúdos médicos publicados em minhas redes sociais estão disponíves em muitas plataformas internacionais. Cada apresentação em forma de video ou postagem vem sim com as referências científicas das revistas mais bem conceituadas no mundo.

Gostaria de informar que as informações apresentadas estão sim dentro da Propria Literatura Médica como sempre estiveram. Caso vocês estejam levando esta ameaça a publico saibam que a informaçóes cientificas declaradas em todas as minhas publicações e vídeos estão regulamentadas no PUBMED e não são as entidades médicas que devem ser portadoras de palavra final, pois o PUBMED é a excelencia, e se os artigos estão nesta plataforma internacional regida pelo NIH quem está faltando com a veracidade não sou eu.

Quanto o atendimento médico, faz parte de uma abordagem Integrativa dentro de substancias que também estão pautadas na ciência, ninguém está impedido de receitar medicações seguras, aplicáveis as patologias diagnosticas, respeitando o Do not Harm do Juramento. Não faço propaganda de nenhum substância que não esteja sustentada dentro do painel de atendimento das doenças que os pacientes apresentam. A visão atual do Reforço Imunológico e abordagem metabolica é uma realidade no mundo tudo, Todos os pacientes fazem normalmente seus tratamentos prescritos por seus médicos e nenhum paciente que acompanho deixou se tratar com o preconizado por seus médicos assistentes.

Espero ter respondido aos questionamentos de vocês e sempre o farei quando, repito em todas as publicações as referências foram apresentadas. Faço parte de várias Organizações de Discussão Científica Internacional como Doctor for World, World Council for Health, e da Great Barrington Declaration e PANDATA.org. GBD a qual o seu criador hoje é o Chefe do National Institute of Health dos EUA, acabou de tomar posse.

Nada do que eu apresento está sem consistência científica.

Dr Nasser.

Loiola também foi procurado pelo Aos Fatos na quinta-feira (27), mas não respondeu ao pedido de posicionamento até a publicação deste texto.

O caminho da apuração

Aos Fatos pesquisou médicos que foram desmentidos por checagens publicadas durante a pandemia da Covid-19 e verificou suas publicações recentes nas redes. A reportagem buscou, então, especialistas e documentos para analisar os posts dos influenciadores.

As especialidades dos profissionais foram consultadas no site do Conselho Federal de Medicina, onde também foi encontrado o Código de Ética Médica. Por fim, Aos Fatos procurou os médicos citados para pedir posicionamento.

Compartilhe

Leia também

Anúncios no Facebook criam falsos indígenas com IA para vender ‘curas naturais’ sem eficácia

Anúncios no Facebook criam falsos indígenas com IA para vender ‘curas naturais’ sem eficácia

falsoÉ golpe lista de beneficiários que vão receber restituição de descontos do INSS

É golpe lista de beneficiários que vão receber restituição de descontos do INSS

falsoÉ falso que ex-assessor de Moraes disse que havia infiltrados de esquerda no 8 de Janeiro

É falso que ex-assessor de Moraes disse que havia infiltrados de esquerda no 8 de Janeiro