Tornado público pelo STF (Supremo Tribunal Federal) nesta terça-feira (26), o relatório final da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de Estado em 2022 traz áudios, trocas de mensagens e documentos em que militares e aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) descrevem métodos para manipular as conversas nas redes sociais e coordenar ataques virais.
Os indícios afastam a interpretação de que as mobilizações contrárias à posse de Lula (PT) emergiram de forma orgânica. Tendências virais e desinformação foram uma estratégia contínua na escalada golpista que culminou nos ataques de 8 de janeiro de 2023 em Brasília.
O relatório indiciou Bolsonaro e mais 36 pessoas por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.
Aos Fatos detalha a seguir, com base no relatório divulgado pela PF na última terça, como correntes de desinformação, convocações para manifestações e ataques a autoridades se relacionaram intimamente com os planos dos golpistas e, em muitos casos, inundaram as redes com a participação direta dos investigados.
- Interpretação deturpada do art. 142
- Discurso de fraude
- Acampamentos e marchas
- Ofensiva contra ‘melancias’
- Livrar golpistas do 8 de Janeiro
Interpretação deturpada do art. 142
O plano revelado pela PF mostra que os golpistas tentaram legitimar a ação com base em uma interpretação equivocada do artigo 142 da Constituição, que trata das atribuições das Forças Armadas. A deturpação dissemina a ideia de que a Constituição dá aos militares um suposto “poder moderador”, o que é mentira.
A versão falsa sobre a possibilidade de uma “intervenção militar constitucional” é antiga e começou a se popularizar na época do impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, mas ganhou papel central na tentativa de golpe de 2022, a ponto de a própria conspiração ter sido batizada pelos golpistas de “operação 142”.
O termo aparece em um documento encontrado pela PF na sede do PL, sobre a mesa do coronel Flávio Botelho Peregrino, assessor do general Braga Netto. O esboço das ações planejadas para a denominada “operação 142” foi escrito à mão e citava um “decreto 142” como enquadramento jurídico para o plano.
Segundo a PF, a interpretação ilegal da Constituição também foi identificada em anotações do ex-diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), o atual deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), e do general Augusto Heleno — ambos alvos de busca e apreensão.
Em linha com o que dizia o plano da “operação 142”, o artigo da Constituição foi a base da minuta de decreto encontrada pela PF na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, em janeiro de 2023. O documento previa a instauração de estado de defesa no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) com o intuito de anular as eleições de 2022 e impedir a posse de Lula.
Enquanto apoiadores de Bolsonaro articulavam o golpe, várias peças de desinformação citando o artigo 142 voltaram a circular nas redes, como o Aos Fatos mostrou na época. O relatório da PF reforça que os próprios conspiradores ajudaram a alimentar a corrente de desinformação.
- Em 25 de novembro de 2022, por exemplo, o padre José Eduardo de Oliveira e Silva — um dos indiciados pela PF — enviou a magistrados um arquivo chamado “Saad-Artigo 142.pdf”.
- No documento, o advogado Amauri Feres Saad — apontado como um dos responsáveis pelo decreto golpista — defendia que o artigo 142 dava ao presidente poder para convocar as Forças Armadas “em situações extremas”, para garantir a lei e a ordem.
- Cinco dias depois, dois desembargadores aposentados participaram de uma audiência para discutir as eleições convocada por uma comissão do Senado, na qual também defenderam a falsa interpretação do artigo 142.
- O relatório da PF mostra que o general Mario Fernandes — então secretário-executivo da Secretaria-geral da Presidência da República, preso no último dia 19 — participou ativamente na divulgação da audiência, que foi convocada pelo senador Eduardo Girão (Novo-CE).
Discurso de fraude
A tese jurídica defendida pelos golpistas estipulava que, para a convocação da intervenção militar com base no artigo 142, era preciso haver uma grave crise institucional. No plano arquitetado, isso correspondia à descoberta de uma suposta fraude nas eleições de 2022.
Segundo a PF, os apoiadores do ex-presidente se valeram de milícias digitais para levantar suspeitas sobre a segurança das urnas, em discurso que começou a ser montado com antecedência com o intuito deliberado de facilitar sua aceitação, já que “receber mensagens semelhantes de várias fontes é muito mais persuasivo”.
“Os investigados sabiam que a narrativa falsa de fraude eleitoral, sendo disseminada por muito tempo, por vários canais, especialmente na internet (aplicativos de mensagens, redes sociais, vídeos, entrevistas etc.), em grande volume seria extremamente eficiente em seu público-alvo”, diz o relatório final da investigação.
Além da “repetição maçante das informações, mesmo que falsas”, os conspiradores teriam usado pessoas “com posição de autoridade” para dar “uma falsa credibilidade às narrativas propagadas”.
As investigações também mostram que os militares golpistas atuaram para potencializar os ataques à segurança das urnas eletrônicas.
O relatório da PF aponta, por exemplo, o major da reserva Angelo Martins Denicoli como o autor de documentos com informações falsas sobre as urnas encontrados em uma pasta no Google Drive do argentino Fernando Cerimedo — que, em novembro de 2022, fez uma live atacando o sistema eleitoral.
Usando termos técnicos para passar credibilidade, Cerimedo mentiu que urnas eletrônicas fabricadas antes de 2020 não eram passíveis de auditoria e que Bolsonaro teria tido menos votação em locais que usaram equipamentos antigos, sugerindo que houve fraude.
Uma mensagem de WhatsApp enviada por Mauro Cid a um coronel também sugere que o material foi elaborado pelos golpistas. “Nosso pessoal que fez… hahahahah… Isso foi a base do argelino [sic]”, respondeu o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, ao receber material idêntico ao divulgado por Cerimedo.
Segundo a PF, logo após a transmissão do canal argentino, Cid recebeu de Tércio Arnaud Tomaz, assessor especial da Presidência que integrava o chamado “gabinete do ódio”, um link com a íntegra da live e um “corte” do vídeo pelo WhatsApp — o que teria como objetivo facilitar sua difusão.
Quando a Justiça Eleitoral derrubou a live, outros militares ajudaram que o conteúdo continuasse circulando, como foi o caso do tenente-coronel Guilherme Marques Almeida, especialista em operações psicológicas. Segundo a PF, o oficial divulgou links de servidores localizados em outros países onde o vídeo estava hospedado.
Os mesmos argumentos falsos apresentados por Cerimedo foram reforçados por um estudo do IVL (Instituto Voto Legal) encomendado pelo PL para embasar a ação em que o partido pediu a anulação das eleições.
A investigação da PF diz que o presidente do instituto, Carlos Cesar Moretzsohn Rocha, e do PL, Valdemar Costa Neto, ao divulgar o parecer que levantava suspeitas sobre as urnas, ignoraram as recomendações do técnico contratado para realizar a análise, que não encontrou indícios de fraude.
Acampamentos e marchas
Diversas mensagens descobertas pela PF confirmam que os indiciados forjaram um suposto “clamor popular” para preparar terreno para o golpe estimulando os acampamentos nas portas dos quartéis.
O general Mario Fernandes, segundo a PF, mantinha contato direto com líderes do acampamento que se formou às portas do QG do Exército, em Brasília, passando orientações e ouvindo demandas dos manifestantes.
Documentos encontrados em posse do general mostram que o oficial elaborou um flyer apócrifo convocando apoiadores do ex-presidente para se manifestar em Brasília no dia 9 de novembro de 2022. “Agende a marcha em sua cidade”, dizia o rascunho do panfleto.
Outro arquivo do general indicava o planejamento de faixas para serem usadas pelos acampados no QG. O documento dispunha em retângulos frases que coincidiam com bordões propagados nas redes, como:
- “Liberdade sim, censura não”;
- “Contagem pública dos votos”;
- “SOS Forças Armadas”;
- “Não à ditadura do Judiciário”.
No dia 11 de novembro de 2022, os chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica publicaram uma nota conjunta em que, apesar de condenarem os “excessos” dos acampamentos, respaldaram o direito às mobilizações.
O recado deu segurança aos manifestantes, que começaram a organizar uma nova ação para o dia 15 daquele mês, em que pretendiam marchar rumo à praça dos Três Poderes. As mensagens interceptadas pela PF mostram que Mauro Cid tinha conhecimento do movimento, que tinha como objetivo pressionar o Congresso e o Judiciário.
Já Mario Fernandes, ao ser questionado sobre a ideia de promover a caminhada, antecipou uma retórica — nunca comprovada — que seria usada semanas depois para desresponsabilizar a direita pelo vandalismo do 8 de Janeiro: a possibilidade de “infiltrados” promoverem atos de violência.
“Parece que existe um movimento de esquerda trazendo integrantes do PCC, integrantes do MST, para se infiltrarem, inclusive em Brasília, nos movimentos patriotas. Eles se infiltrarão com o objetivo de causar tumulto e com objetivos maiores, inclusive, que serão comparados, por exemplo, à invasão do Capitólio nos Estados Unidos depois da derrota do Trump nas últimas eleições, certo?”, disse o general a um coronel da reserva.
Após a reunião do dia 12 de novembro na casa de Braga Netto, em que a PF diz que teria sido discutido um plano para assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes, as manifestações começaram a recrudescer, culminando na tentativa de invasão da sede da Polícia Federal em 12 de dezembro — data da diplomação de Lula.
Às vésperas do evento, segundo a PF, influenciadores que mantinham contato com envolvidos na trama golpista começaram a usar as redes para pressionar pelo golpe.
“Eu, o povo, te autorizo. Usa a Bic. Porque essa Bic vai libertar vai libertar não só o Brasil, mas o mundo, do Comunismo”, narrava um vídeo encontrado no celular do destinatário da mensagem: Bolsonaro.
Já os metadados de uma imagem encontrada no celular de Fernandes mostram que o general criou e difundiu um comunicado pelo WhatsApp convocando para uma grande ação, marcada para dois dias antes da diplomação de Lula, que tinha como objetivo promover um “cenário caótico” no país e forçar uma intervenção militar.
“Esta mensagem não pode correr grupos”, dizia o texto, recomendando que só fosse repassada individualmente a pessoas confiáveis e apagada após a leitura.
O ápice da movimentação popular aconteceria às vésperas do dia em que os golpistas planejavam efetuar o golpe: 15 de dezembro.
A ação, porém, foi cancelada na última hora porque os golpistas não teriam conseguido convencer os comandantes do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes, e da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, a aderir ao plano.
Ainda assim, mensagens interceptadas pela PF indicam que os conspiradores ainda mantiveram a esperança de virar o jogo e, às vésperas do 8 de Janeiro, aguardavam uma última cartada.
“Ainda tem algo para acontecer?”, perguntou o tenente-coronel Sérgio Cavaliere a Mauro Cid quatro dias antes do ataque às sedes dos Três Poderes. Na resposta, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro enviou duas mensagens, posteriormente apagadas.
Ofensiva contra ‘melancias’
No final de novembro, como o Aos Fatos já mostrou, Mauro Cid e outros militares envolvidos no golpe já articulavam uma campanha para difamar oficiais que estariam resistindo ao plano golpista. O intuito seria pressionar o comandante do Exército.
Segundo a PF, os conspiradores teriam articulado a exposição dos generais Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, comandante militar do Sudeste; Richard Fernandez Nunes, comandante militar do Nordeste; e Valério Stumpf Trindade, chefe do Estado-Maior do Exército.
Os três oficiais tiveram seus nomes divulgados pelo então comentarista da Jovem Pan Paulo Figueiredo Filho, no programa Os Pingos nos Is, em 28 de agosto de 2022, passando a ser alvo de ataques nas redes.
Segundo as investigações, no dia 7 de dezembro, Bolsonaro apresentou pessoalmente a minuta do golpe aos chefes militares, ouvindo a recusa de Freire Gomes e de Baptista Junior em aderir ao plano — apenas o comandante da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, teria manifestado apoio.
Com a resistência, novas ações de pressão passaram a ser articuladas. No dia 12 de dezembro de 2022, após a prisão do cacique Serere Xavante, Bolsonaro recebeu influenciadores no Alvorada, segundo a PF. Na sequência da visita, Bismark Fugazza, do canal Hipócritas, fez duas publicações em suas redes tentando sensibilizar Freire Gomes:
Em vídeo gravado nos jardins da residência de Bolsonaro, Fugazza mandou instruções a seus seguidores:
“Olá pessoal, estou aqui na Alvorada e eu tenho uma missão pra todos. Prestem bem atenção que é bem sério. Precisamos clamar ao general Freire Gomes. Eu posso falar que ele é a peça fundamental pra que tudo aconteça. Então, ele não é melancia. Ele não é uma pessoa do mal. Ele não é nada. Ele é do nosso lado. Então nós precisamos clamar que ele faça o que deve ser feito. Então, façam faixa, espalhem.”
Mensagens disponibilizadas no relatório da PF indicam que, com a confirmação de que os chefes do Exército e da Marinha não estavam de acordo com o golpe, o major reformado Ailton Gonçalves Moraes Barros teria recebido o aval de Braga Netto para viralizar ataques a militares legalistas.
Em depoimento, Freire Gomes e Baptista Jr. disseram que, depois de 14 de dezembro, passaram a receber uma enxurrada de mensagens nas redes, que lhes atribuíam os rótulos de “melancia” e “traidores da pátria”, além de ataques de Paulo Figueiredo Filho.
Livrar golpistas do 8 de Janeiro
O relatório da investigação sugere que, mesmo após o fracasso da tentativa de golpe, os conspiradores agiram para pautar os discursos da direita sobre os ataques violentos a Brasília após a posse de Lula.
O arquivo “CPMI de 08 de janeiro”, encontrado em um HD externo do general Mario Fernandes, lista uma série de “ideias-forças” para serem exploradas pela oposição na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito.
Na época, Fernandes trabalhava como assessor no gabinete do deputado recém-eleito Eduardo Pazuello (PL-RJ), militar que havia sido ministro da Saúde no governo de Bolsonaro.
Criado em 16 de maio de 2023, o documento encontrado no HD de Fernandes reuniam estratégias que, na avaliação da PF, tinham como objetivo:
- Imputar os atos golpistas ao governo Lula, afastando a responsabilidade dos envolvidos nos atos e desgastando a nova gestão, visando um eventual impeachment do novo presidente;
- Desgastar o STF e Alexandre de Moraes, com a finalidade de obter o impeachment dos ministros da suprema corte e reverter as prisões dos manifestantes detidos pelo 8 de Janeiro;
- Disseminar “uma ação de intimidação e coação contra a Polícia Federal, criando a narrativa de que o órgão policial cometeu abuso ao cumprir ordens ilegais” com a prisão dos responsáveis pelos ataques a Brasília.
A PF também localizou um caderno em que Fernandes teria planejado imputar ao então ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, responsabilidades pelos ataques.
As anotações também continham frases que remetem a teorias exploradas pela oposição na CPMI do 8 de Janeiro, incluindo à viagem que o presidente Lula fez a Araraquara (SP) no dia das invasões golpistas.
O caminho da apuração
Aos Fatos analisou e organizou as informações do relatório da Polícia Federal que embasou o indiciamento de Bolsonaro. Em seguida, a reportagem comparou o conteúdo com as correntes virais relacionadas ao tema que circularam em 2022.
A reportagem também consultou notícias antigas para contextualizar as informações e está tentando localizar a defesa dos investigados, para pedir posicionamento. O texto será atualizado em caso de resposta.