Os agentes cedidos à Abin (Agência Brasileira de Inteligência) presos na operação desta quinta-feira (11) usaram ilegalmente a estrutura do órgão para criar desinformação e se infiltraram em grupos de extrema-direita para ampliar a difusão de mentiras que beneficiavam o governo Bolsonaro. A informação consta em relatório da Polícia Federal, divulgado na última quinta (11) com a queda do sigilo sobre as investigações.
O documento traz diversas conversas em que o agente da PF Marcelo Araújo Bormevet e o sargento do Exército Giancarlo Gomes Rodrigues — presos na operação — combinam os ataques a alvos das ações clandestinas, incluindo o Aos Fatos.
Segundo o relatório, os investigados monitoravam seus alvos — em alguns casos, usando ferramentas de inteligência de forma irregular — em busca de elementos que pudessem ser explorados na construção de alegações falsas. Os dados eram propagados por meio dos desinformadores — que, em muitos dos diálogos, pareciam não saber que tinham como interlocutores agentes de inteligência.
Segundo a PF, o então diretor da Abin e hoje deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), pré-candidato a prefeito do Rio de Janeiro, solicitava alguns dos trabalhos da estrutura paralela, “sem pertinência para inteligência de Estado, mas para fins políticos”.
Além de agências de checagem e jornalistas, a operação plantou ataques contra ativistas, ONGs, políticos e outras autoridades. Entre as ações levadas a cabo pelos agentes estão a criação de peças de desinformação contra senadores que faziam parte da CPI da Covid e que ligavam ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) a insinuações sobre a segurança das urnas eletrônicas.
“A difusão de desinformação a partir de vetores de propagação cooptados por servidores públicos cedidos à Abin é estratagema para dificultar a vinculação da produção ilícita”, diz a investigação.
Intermediários
O relatório da PF indica que um dos primeiros cooptados pelos agentes da Abin foi o empresário e influenciador Richards Dyer Pozzer, que também teve prisão preventiva decretada na última quinta (11).
Os diálogos obtidos pela polícia indicam que a comunicação com Pozzer era feita por Rodrigues, que relatava esses contatos a Bormevet. Por meio desse canal, os agentes da “Abin paralela” teriam vazado, por exemplo, informações de um inquérito da PF contra o grupo Sleeping Giants Brasil que o Judiciário tinha mandado arquivar.
Em 2021, Pozzer teria convidado Rodrigues para fazer parte do que chamou de “grupo do bem”, do qual participariam “analistas de sistemas e advogados que atuam nessa frente de batalha”. “A gente vai reunindo coisas e jogando lá”, diz o influenciador em diálogo com o sargento.
“Agora o bagulho vai ficar doido Kkkkkkk”, celebrou Rodrigues ao reportar a conquista a Bormevet — que, em alguns diálogos obtidos pela PF, passaria a se referir ao coletivo como “grupo dos malucos”.
Usando no grupo o perfil falso “Verdades Marcelo Augusto”, Rodrigues começou a plantar desinformações construídas usando a estrutura da Abin.
“A cooptação de grupos para disseminação de desinformação era estratagema para dificultar a rastreabilidade dos reais responsáveis pelas campanhas de desinformação. Neste caso, servidores públicos atuando no sistema de inteligência nacional”, destaca o relatório.
Por meio de Pozzer, segundo a PF, os agentes também teriam conseguido estabelecer um fluxo de comunicação com o canal Terça Livre, do blogueiro foragido Allan dos Santos, e com servidores ligados à Presidência da República.
Os diálogos obtidos pela PF mostram ainda os agentes da “Abin paralela” celebrando quando Pozzer foi citado pelo senador Humberto Costa (PT-PE) na CPI da Covid, em agosto de 2021. “Que excelente. Ele vai poder fazer ao vivo a execração desta gente”, diz Bormevet ao receber a notícia de Rodrigues.
A CPI da Covid-19 foi o pano de fundo de várias ações clandestinas operadas pelo esquema. A elaboração de um dossiê contra agências de jornalismo — que, além dos Aos Fatos, teve como alvo também a Agência Lupa — teria ligação com a proposta do senador Renan Calheiros (MDB-AL) de convidar organizações de checagem para verificar em tempo real declarações feitas durante a CPI.
Senadores atuantes na comissão também foram alvo de desinformação. Além de Calheiros, as ações miraram Omar Aziz (PSD-AM), Randolfe Rodrigues (Sem partido-AP) e Alessandro Vieira (MDB-SE).
No caso de Vieira, a atuação da “Abin paralela” teria sido motivada por ações do senador que prejudicavam o vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro (PL). À época, o parlamentar tinha pedido a quebra de sigilos e a convocação do filho 02 de Bolsonaro na CPI da Covid-19, além de participar de uma ação popular sobre a aquisição do software de espionagem Pegasus, que teria o envolvimento do vereador.
No grupo acessado por convite de Pozzer, a “Abin paralela” também teria difundido uma campanha de ataques ao então diretor da Polícia Federal, Paulo Maiurino. A argumentação construída buscava associar o alvo a desafetos dos bolsonaristas, como o ex-governador do Rio Wilson Witzel, o ministro do STF Dias Toffoli e o ex-governador de São Paulo e atual vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB).
“Bem estranho, o cara foi chefe da segurança do STF na gestão de Dias Toffoli e agora é nomeado chefe da PF? Além de ser secretário de Esporte, Lazer e Juventude do governo de Geraldo Alckmin (PSDB) em São Paulo, ainda integrou o Conselho de Segurança Pública do estado Rio de Janeiro no governo Witzel. Sei não… acho que tem alguma coisa aí…”, insinuou Rodrigues, utilizando seu perfil falso.
A informação também teria sido repassada a Oswaldo Eustáquio, com quem o sargento estava em contato desde dezembro de 2020. Rodrigues disse em diálogo com Bormevet que teria procurado o blogueiro, hoje foragido na Espanha, usando um email falso e que se recusava a falar com ele por telefone, porque “esse cara deve ter grampo até na cueca”.
Outro influenciador usado como intermediário para difundir desinformação da Abin, segundo a PF, foi Rogério Beraldo de Almeida, conhecido como “Dallas Cowboy”, que Rodrigues conheceu em um dos grupos em que se infiltrou.
Também foi cooptado o perfil @vlog_do_rui, por meio do qual os agentes teriam espalhado desinformação para associar o homem que esfaqueou Bolsonaro em 2018, Adélio Bispo, a diversos desafetos do governo, como a jornalista Mônica Bergamo e o ex-governador de São Paulo João Doria, além de José Dirceu (PT), Rodrigo Maia (PSDB), a família Marinho e o senador Sergio Moro (União Brasil-PR).
O print de uma publicação do blog foi compartilhado em uma das conversas entre os agentes da “Abin paralela”. “Olha só. Colhendo os frutos da minha nova amizade por causa do material enviado”, disse Rodrigues a Bormevet.
‘Ação de desinteligência’
Segundo a PF, o esquema da “Abin Paralela” envolvia “a construção de relações inexistentes que, em que pese desafiarem a lógica comezinha, se prestam para gerar a desinformação e atacar instituições e opositores”.
- A estratégia foi usada também para tentar levantar suspeitas sobre a segurança das urnas eletrônicas;
- Em agosto de 2021, os agentes leram notícia publicada pelo site desinformativo Painel Político, que insinuava que o ministro do STF Luiz Fux e a família do ministro Luís Roberto Barroso teriam ajudado a “blindar o Itaú em calote bilionário via CNJ”;
- A “Abin paralela” levantou, então, a informação de que o Itaú teria 13% das ações da Positivo, empresa que tinha vencido concorrência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para fornecer novas urnas eletrônicas;
- A informação foi jogada no que apelidaram de "grupo dos malucos" e acabou propagada pelo perfil Veritas Bureau Brasil no então Twitter (atual X). “Qual o preço da democracia?”, dizia o post.
“Salienta-se por oportuno que apesar de se tratar de associações esdrúxulas, sem qualquer fundamento lógico, a ausência de processo cognitivo na execução das ações clandestinas não tem o condão de desqualificar a potencialidade ofensiva da desinformação gerada”, destaca a PF.
“As ações clandestinas realizadas para desacreditar o sistema eleitoral foram realizadas valendo-se da estrutura do Estado Brasileiro, em especial da estrutura paralela infiltrada, também, na Abin e em outras instituições”, afirma ainda o relatório.
Outro lado
O Aos Fatos procurou o escritório Chiquini Advogados, que representa Richards Dyer Pozzer, mas não houve resposta à tentativa de contato.
Em publicação no X, o deputado Alexandre Ramagem relacionou a operação à pré-campanha para a Prefeitura do Rio. “Após as informações da última operação da PF, fica claro que desprezam os fins de uma investigação, apenas para levar à imprensa ilações e rasas conjecturas”, criticou (leia a íntegra).
Já o vereador Carlos Bolsonaro, também nas redes, chamou a imprensa de “gabinete do ódio do sistema”, acusando-a de não ter provas, “a não ser o fetiche por minha imagem”.
A reportagem não conseguiu identificar os advogados de Rogério Beraldo de Almeida, Marcelo Araújo Bormevet e Giancarlo Gomes Rodrigues, que estão presos. O espaço segue aberto para manifestação.
Também não foi possível entrar em contato com os responsáveis pelos perfis apócrifos @vlog_do_rui e @veritasbureau, que não estão mais disponíveis.
A reportagem procurou ainda o blogueiro Oswaldo Eustáquio, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
Colaborou Ethel Rudnitzki.
O caminho da apuração
O STF divulgou nesta quinta-feira (11) informações sobre a operação que levou à prisão de ex-servidores acusados de envolvimento na “Abin paralela”. O texto contém links para a íntegra da decisão que autorizou a operação, além dos relatórios da PF e da PGR sobre o tema.
A reportagem leu todo o trecho do relatório da PF que relaciona a “Abin paralela” à produção de desinformação, para remontar a cronologia da história. Depois, tentou localizar os agentes e influenciadores citados.