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🕐 ESTA REPORTAGEM FOI PUBLICADA EM Setembro de 2020. INFORMAÇÕES CONTIDAS NESTE TEXTO PODEM ESTAR DESATUALIZADAS OU TEREM MUDADO.

O que a lei e a ciência afirmam sobre a vacinação obrigatória no Brasil

Por Amanda Ribeiro

4 de setembro de 2020, 15h00

O presidente Jair Bolsonaro disse nesta semana que “ninguém é obrigado a tomar vacina”, mas isso é verdade? Não, segundo uma lei sancionada por ele mesmo em fevereiro deste ano. Além disso, a obrigatoriedade da imunização já consta na legislação brasileira desde 1975. Hoje, vacinar é um dever previsto no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e mesmo adultos estão sujeitos a sanções.

A seguir, explicamos quais têm sido os efeitos da vacinação obrigatória na saúde pública e nas liberdades individuais no Brasil.


A vacinação é obrigatória?

Por mais que não existam punições severas, a obrigatoriedade da vacina está, sim, prevista na lei brasileira. Promulgada em 1975, a lei 6.259, que instituiu o Programa Nacional de Imunizações, já ressaltava a obrigação de se vacinar. Nela, há previsão até mesmo da edição de medidas estaduais — com audiência prévia do Ministério da Saúde — para o cumprimento das vacinações.

Essa obrigatoriedade, explica Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP (Universidade de São Paulo), implica sanções como as previstas na Portaria nº 597, de 2004, que instituiu o calendário nacional de vacinação. Ali, é apontado que o indivíduo, não tendo completado o calendário, não poderá se matricular em creches e instituições de ensino, efetuar o alistamento militar ou receber benefícios sociais do governo.

“Quando a gente está falando de obrigatoriedade, não estou dizendo que a pessoa que se recusar vai ser presa, não é nada disso. Existem coisas obrigatórias no Estado. Por exemplo, o voto é obrigatório, mas ninguém vem na sua casa te obrigar a votar. O que acontece é que se criam sanções”, explica Dourado.

Para o médico e advogado, a obrigatoriedade se mostra de maneira tão clara em textos anteriores que nem seria necessário determiná-la na lei 13.979, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em fevereiro de 2020 com formas de enfrentamento ao surto de Covid-19. O texto, no entanto, reforça que a vacinação compulsória pode ser uma das medidas adotadas por autoridades de saúde no controle da pandemia.

Caso isso ocorra, entretanto, Dourado ressalta que os termos da campanha de imunização devem ser estipulados em uma nova portaria.

“Esse dispositivo não cria uma vacina obrigatória em abstrato, até porque não existia vacina quando essa lei foi aprovada, e até hoje não existe. Mas quando tivermos uma vacina, o Ministério da Saúde tem, sim, competência para torná-la obrigatória. Isso não significa que vai ser para toda a população. O ministério tem que publicar isso em uma norma jurídica, uma portaria, especificando se vai ser obrigatória, para quem, para que grupos populacionais. Pode ser, por exemplo, só para idosos e para crianças. Isso vai ser definido com base na vacina.”

Outras previsões legais. Para crianças e adolescentes que não completarem o calendário vacinal, o ECA prevê sanções administrativas aos pais e responsáveis. O parágrafo 1º do artigo 14 é claro ao determinar que é “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. A pena pode incutir no pagamento de uma multa que varia de três a 20 salários mínimos. Daniel Dourado afirma que se pode, em tese, chegar ao limite da sanção do estatuto, que é a perda de guarda da criança. Para isso, no entanto, seria necessária uma ação judicial.

Há, ainda, obrigações específicas para trabalhadores que atuam em regiões como portos e aeroportos. De acordo com a Portaria nº 1.986/2001 do Ministério da Saúde, “é obrigatória a vacinação dos trabalhadores das áreas portuárias, aeroportuárias, de terminais e passagens de fronteira”.

Por mais que não cite especificamente a imunização, o Código Penal também estabelece punição, em seu artigo 268, a quem “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. A pena prevista, nesses casos, é de detenção de um mês a um ano e multa. As punições são aumentadas em um terço se os responsáveis forem funcionários de saúde pública ou exercerem profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.


Por que a vacinação em massa é importante?

A vacinação pode ser considerada uma medida de solidariedade social, pois protege ao mesmo tempo o indivíduo e a comunidade. Isso porque, ao imunizar o primeiro, ele se torna uma barreira que impede que outras pessoas mais frágeis se contaminem com a doença.

É justamente por conta dessa lógica coletiva de proteção que, mesmo que em um primeiro momento dependa de uma decisão individual — a de se submeter ou não à vacina — a imunização é considerada uma estratégia de saúde pública.

Conforme explica Flávio Guimarães Fonseca, pesquisador do CT Vacinas (Centro de Tecnologia de Vacinas) da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), quando a maior parte das pessoas se vacina, a doença passa a encontrar menos hospedeiros viáveis.

“Se a maior parte das pessoas está vacinada e tem resposta imunológica contra aquela doença, essas pessoas começam a funcionar como barreira, inclusive para aquelas que não foram vacinadas. Isso diminui a circulação do vírus na população”, afirma.

Ao se vacinar a maior quantidade de pessoas possível, chega-se ao estado de imunidade coletiva, ou imunidade de rebanho, que pode pôr fim ao surto de uma doença infecciosa.

Por isso, quando as taxas de cobertura vacinal estão abaixo do recomendado pelas autoridades de saúde — o que tem acontecido nos últimos anos, em especial nos calendários adultos — o vírus ou bactéria continua a encontrar hospedeiros suscetíveis para contaminar e as doenças podem voltar a circular.

“É basicamente por isso que é importante a decisão de se vacinar. Embora ela tenha conotação individual, é uma decisão de massa. É uma decisão que auxilia a saúde pública de uma forma geral, uma decisão social”, explica Fonseca.

Tal necessidade também se aplica à Covid-19. Mas isso não significa que todos serão necessariamente vacinados ao mesmo tempo, já que é improvável que a oferta inicial de doses consiga atender toda a demanda. De acordo com a infectologista e pesquisadora do Departamento de Clínica Médica da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Raquel Stucchi, “deverão ser elencados ou escolhidos os grupos de maior risco de adoecimento mais grave, os grupos mais expostos a adquirir a doença, e esses grupos possivelmente serão priorizados para a vacinação, se tivermos uma vacina que seja segura e eficaz”.


Na hora de vacinar, o que prevalece: a decisão individual
ou o interesse público?

Por mais que o direito à liberdade esteja previsto na Constituição, ele não pode ser usado para justificar recusas à vacinação, de acordo com especialistas. Isso porque a alegação esbarra em outro ponto previsto na lei: a supremacia do interesse público.

A determinação dos limites entre o individual e o coletivo cabe ao Estado, detentor do chamado poder de polícia. No Direito Administrativo, esse conceito busca garantir o bem-estar social, impedindo o uso abusivo dos direitos individuais ou a prática de atividades nocivas à coletividade, explica Daniel Dourado.

Essa característica intervencionista se aplica em ações de saúde pública, de acordo com o médico e advogado sanitarista: “É identificado pela legislação sanitária o interesse público coletivo que permite que seja limitada a liberdade individual. E aí entramos no campo da vacina, que há muito tempo é reconhecida pela sua ideia de proteção da coletividade. Reconhece-se que há interesse público”.

O professor de Direito Penal da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Davi Tangerino concorda que as liberdades individuais não prevalecem sobre o interesse coletivo na vacinação.

“Existem comportamentos que, embora pareçam afetar apenas o indivíduo, refletem no corpo social como um todo. Vacinação só funciona se atingir uma altíssima proporção da população. Outros exemplos: uso de cinto de segurança, serviço militar, regras de construção. Nesses casos, meu direito individual cede, em parte, à segurança viária, à defesa nacional e à segurança coletiva”, explicou, em entrevista ao Aos Fatos.

Em publicação no Twitter que comenta a declaração do presidente Jair Bolsonaro, Tangerino explica ainda que um dos requisitos para que um indivíduo tenha acesso aos direitos sociais previstos na Constituição é que os respeite. “Com a saúde pública não é diferente. As vacinas transcendem à escolha individual; por serem (e quando forem) cientificamente recomendadas, o meu direito individual a decidir sobre a minha saúde cede ao direito coletivo de um ambiente livre de sarampo, por exemplo.”

Referências:

1. UOL
2. Planalto (Fontes 1, 2, 3, 4 e 5)
3. Ministério da Saúde
4. Secretaria Especial do Desenvolvimento Social
5. G1


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